sexta-feira, agosto 29

LIÇÃO Nº 2

UNIR, A PASSAR PELO CENTRO, OS
3 VÉRTICES DE 1 TRIÂNGULO EQUILÁTERO


O Passado, Está Em Voga
O Futuro Berra & Bem, E O
Presente, Bem O Presente
É Convergência Que Já Brota
Como Quem: «Cospe Calmo!»

COMO SER PRETENSIOSO

Não alimento sonhos, não são para mim
sou mais de pesadelos. Um dia perguntaram-me
Mas tu queres viver da poesia? Ao que respondi
Eu já vivo dela. Não, o que pergunto é
economicamente, gostarias de viver da escrita?
Sinceramente, de maneira alguma. Viver para ela
já me chega, prefiro mil vezes viver da miséria
colher os seus frutos podres, mascá-los com iguais dentes
aguardar com a certeza de que o corpo não amolece,
e por enquanto, isso não me preocupa, no máximo
enrijece, mas só depois de mim. Logo a seguir ao pesadelo.

NO CAMINHO DA FELICIDADE

Num vão de escadas, come-se chamuças
e quebra-se o gelo d’agosto. Depois
do shopping, onde não encontrei o que
queria, a força perpétua do negócio de neons:
um rui esgotado e pouco mais para escolher.
Daqui, no caminho, o silêncio, os prédios
a recortar o horizonte como uma tesoura
gigante. Sacos que passam com pessoas pesadas
adolescentes que se juntam na felicidade comprada
um banco de jardim que aguarda só

um poema pobre como a própria tarde.

terça-feira, agosto 26

STUPOR MUNDI

Sofremos com nojo a pertença em nós
indulcada de uma geração, as suas taras
vindas de longe, modos diferentes
de se ser igual. Com uma raiva triste,
vêmo-los foder, procriar, indo aos poucos
definhando, esperados que são
por pós-modernos jazigos.

Não há nada a fazer,
nenhuma palavra nos salva.
É-se sempre contemporâneo da merda.

Manuel de Freitas

A CARREIRA DO MESSIAS

No autocarro, a concórdia sublime.
A voz rouca despoleta do silêncio
um coro impaciente prestes a explodir.
Esperou demasiado, os outros também,
esperavam-no como um Messias
dos transportes públicos. Uma hora
de atraso era demasiado, ia dizendo.
Prontificou-se também a berrar que não permitiria
a leitura do seu passe. Chamem a polícia
era a sarcástica palavra d´ordem. Querem
que andemos de autocarro, muito bem
mas esta merda não pode acontecer.
Quase se espumava da boca. Vociferou
foi apoiado, e ovacionado lá saiu.

Fez-me lembrar os intelectuais da nossa praça,
talvez um pouco mais complexo e causídico.

O DIREITO DO MAIS FORTE À LIBERDADE - RAINER WERNER FASSBINDER (1974)

1.

Quem tem amor não tem
razão, tem apenas frio.
Não te confundas, cão
vadio, com chacais.
Pois o chacal é um animal
que tem sempre razão.

2.

Sou tão feliz. Estas lágrimas,
não liguem, é do álcool.
Vá - pago um copo
a quem disser que me ama!

3.

Não te deixes enganar, raposinho,
pelos modos bem criados do chacal.
Não eras tu que dizias «Há pessoas
que se lavam, e há outras que são limpas»?

Que não te impressione a toalha de linho,
o brilhos dos talheres, o arroto de lavanda.
Repara antes no seu prato: reconheces,
inocente, o acepipe? É o teu coração,

raposinho, isso mesmo, o teu coração.


José Miguel Silva

domingo, agosto 24

SO GOODNIGHT

Não posso dizer que tenha aprendido grande coisa
nos últimos, digamos, duzentos anos.
Há muitas perguntas que vão perdendo altura
à medida que as penas tombam e também
as garras já não prendem como soíam.
Depois de ter visto de que palha são enchidos
os príncipes felizes, já não saio de casa
sem levar comigo uma carteira de fósforos.
Agora tenho mais tempo morto, só de cinco
em cinco anos compro uma pilha nova
para o relógio. Em vez de cortar os pulsos
cortei a linha do telefone. Já não acordo de noite
para lhe perguntar por que não tocas.
E o que mais me custa, no fim de contas,
é dar razão a Confúcio quando afirma:
quanto mais te ergues para Deus mais ele
de ti se afasta, deixando-te sozinho
a arrumar a casa. Mas estes chineses,
na filosofia moral como no ténis de mesa,
acabam sempre por levar a taça,
e por esta altura da minha queda já concedo
que seja o silêncio a condição natural
para uma ave sem nome que Setembro chamou
e que há duzentos anos não aprende nada.

José Miguel Silva

sábado, agosto 23

ENQUANTO

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
presuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossados pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer e o mais que não se diz por ser
JJJverdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA


António Gedeão

TRAVESSA DA QUEBRADA Nº 17

Sobre a mesa a enevoada sombra
de algumas cervejas, o
travo amargo da noite. Estás
cercada de medo e de ausência
e um cigarro aflora-te por vezes
aos lábios ternos, destruídos.
Mas nada te quero esconder
são vazias estas mãos
por mais que alguém lhe pudesse
dar alguma vez.

A música agora podia ser
na voz quase mineral de Joan
La Barbara. Tu nem sabes, mas podia,
if I do, if I do "love evil".

E ao falar de tanta dor
não sei se é de ti
se de mim

por onde vai a voz.


Manuel de Freitas

quinta-feira, agosto 21

NADA DE GRAVE

De imperfeições cresce o amor.
Perfeito, só nas realizações estuporadas.
Dos gestos toscos, das palavras envergonhadas
Cresce o amor como nos filmes onde morre:
Sobressai o lado prosaico da geometria caduca.
Dos silêncios genéricos e do límpido esgoto
Correm as águas transtornadas, não caem
Continuam até ao oceano incerto, mas só porque
De facto o amor não se quer perfeito. Algo falha.
De amar, só mesmo a imperfeição e só depois
A inversão pela ânsia. De tal maneira
Que num dia inesperado, tudo cai como cresceu.

Se assim não for, nada de grave
É só porque o amor não existe.

quarta-feira, agosto 20

ANTES QUE CEGUES

Desde puto as histórias, as mezinhas
Contadas por uma voz taciturna, o desejo
De incutir o primeiro filamento para futuro
Obrigando-me a fugir da frescura das sombras.

Pouco depois, descobri - já lia inocente
Os quadradinhos – aquela personagem
Malévola que se dispunha ao mal
Como um melanoma depois de muito sol.

Não é portanto com espanto, que reconheço.
Desde sempre as sombras cresceram em mim
Como aquele lado preocupante e descaracterizador
Não tive culpa, mas também cresci, agora venero-as
São como caminhos a seguir. Depois de muita pesquisa
Conclui a sua utilidade para além do medo.

Nas sombras; a oportunidade de ser outro.

terça-feira, agosto 19

THE STRANGER SONG

CENTRO DE DESEMPREGO

Se só as costas vergassem
As mãos não suariam. Dizia isto
Enquanto aguardava a sua chamada
Deveria ter uns quarenta anos
Sentia-se perdido, sempre trabalhara
Até então. Na mão, uma senha denunciava
O peso dos números. Na sala
Outros também, a incerteza não espera.
Continuava. Ao menos esta oportunidade
Incerta, claro, é um cartucho a ser queimado
Um último capaz de me devolver à luta
Foi para isto que nasci e cresci, para trabalhar
E agora que me falha, talvez esta senha.

Ao lado, uma senhora ouvia, os seus olhos
Brilhavam enquanto olhava para a sua B46.

No plasma, a lotaria sonora ia fingindo ofícios.

segunda-feira, agosto 18

O GUARDADOR DE SÍMBOLOS





















Olhar uma foto da cidade
Um quadrado estagnado
Tem muito que se lhe diga
Muito mesmo. Cidade de luz
E urbanística é engano.
Uma imagem cofre
Que agarre pelos cabelos
É do que falo. A vida
Sem filtros, concisa e
Aparentemente perfeita
Uma porta entreaberta
Por empurrar, um tapete

BEM-VINDO

Chegou a território lúcido
Aqui todos aprendemos
Basta: parar, olhar
Descortinar com um bisturi
Os princípios básicos e
As pessoas: o autocarro parado
A fila corcunda em guarda

O mundo a crescer nos passos
Perdido, os placares de publicidade
As lojas prósperas, as pessoas felizes
Miseráveis, teleguiadas por linhas contínuas

Os corpos, as bolas, a tômbola de cartão
A dança, o bailado etéreo da probabilidade

Os pés que desenham no chão deuses gastos
Ratos que evitam as águas onde se afogam.

Um homem só a segurar um ovo quebrado, prestes a estrelar
A simbiose ciclópica, a implícita poesia maldita
A luta, a gritaria afónica na voz de todas as máquinas

Uma imagem vale mais de mil símbolos
As palavras só vêm depois, aguardam a
Imagem apropriada e uterina do tempo.


(Dedicado ao Grande Zé que se dá por Quase.)

sábado, agosto 16

EDEMA PULMONAR

Se ao menos percebesses, que os concursos
Se fazem em caixas de luz suportáveis,
Que a competitividade é um erro pulmonar,
E que tu, ordenhas palavras como um analfabeto
Agarrado a um orgulho cerrado pelos dentes;
Se ao menos percebesses isso, mas não
Preferes marrar na parede com a cabeça
Dizê-la mais dura do que tijolo. Ao menos
Percebe que os dias são de todos, em cada um
As preces selvagens não se limitam ao erro
São muito mais para além dele: transformam-se.

SEM HONRA NEM TÍTULO

DESTE JÀ AVISO: isto não é um poema
É uma carta aberta, uma janela póstuma

É tão bela a liberdade quando nos permite
Acusar e ser acusados. Nunca saímos ilesos
E isso engrossa o prazer. É tão fácil a culpa
Como a desculpa, nada nos detém, a superfície
É plana e imunda e as esfregonas limpam tudo
Mesmo as superfícies mais sujas.

Analogias acumulam-se como pó, o vento
Varre-o daqui para ali numa dança suave
A sua força mitológica só não varre o tempo

Esse: morre pela mão que move ponteiros,
Escreve o perscrutar fundamental das palavras.

sexta-feira, agosto 15

BETTER OFF WITHOUT A WIFE

Esquece o melhor que puderes.
Há drogas e cinema (por
enquanto). Não vais ser tu a aprisionar
os gestos felizes ou sem rumo
de que ainda sou capaz.
Não é nada pessoal, garanto-te.

Bebi sempre demais, acordo
tarde e as crianças estão longe de ser
o meu animal doméstico preferido.
Detesto horários, famílias e obrigações.
Até a partilha dos lençóis,
quando não é o amor a rasgá-los.

Os dias, porém, depressa
nos obrigam ao esterco das rotinas,
ao desejo inútil de procurar
a morte noutros braços

Mas não. Não vou mudar de marca
de cigarros nem de pasta
dentífrica. Acordo logo que puder,
já sabes. Telefono-te rouco,
eventualmente triste, a precisar
de alguma liberdade para poder provar,
sozinho, que a liberdade não existe
mas dá bastante jeito.

E no entanto, depois disto tudo,
é altamente provável que eu te queira
amar. Como não sei melhor, como sei.

Manuel de Freitas

FÁCIL E RÁPIDO

INGREDIENTES*

Amargura moída, amor à vida
Esperança, desilusão, palavras
Olhar perdido, loucura, sal em gotas

Comece por pegar no amor à vida
Cortando-o em lascas finas, depois
Já num recipiente, regue com
Esperança e sal em gotas, junte-lhe
As palavras cortadas pelos sentidos
Mais a loucura. Num outro recipiente
Faça uma papa de desilusão e amargura
Moída. Misture depois tudo e deixe marinar
(Não se preocupe com o tempo nem
Com a dosagem dos ingredientes
O critério é deixado à sua mercê)
Quando achar que marinou a seu gosto,
Unte uma frigideira com olhar perdido
E despeje para lá a mistela até
Saltear e iluminar bem os ingredientes.

Sirva de preferência numa página branca.

*Pode sempre mudar um ou outro
Consoante o gosto ou o desgosto

UM MUNDO CATITA

sexta-feira, agosto 8

HORA DE PONTA

Enquanto os carros passam
As pessoas correm, os prédios
Espelham as gaivotas que
Planam, os sinais dizem
Coisas e os baloiços chiam
As árvores dançam, as sombras
Tremem, e um homem escreve

Parte ponteiros sobre o tampo duma mesa.

DEAD LETTERS OFFICE

A noite não me permite à solidão
Recolho-me na contradição dos poetas.
A luz do globo aquece-me dos mais frios,
Para os mais fervorosos, sirvo-me das sombras.

Todos me dizem «vive por muito que sofras
Por pouco que ames, pela loucura que te consome.
Que seja a loucura e não mais pensarás em suicídio»

Já pensei muitas vezes nessa porta, a mão no
Caixilho a aguardar sabe-se lá o quê, talvez a vida
Alteada: amante psicótico da impossibilidade.

Neste quarto respiram poetas. Uns têm mau hálito
E outros cheiram a rosas. Os meus predilectos são os
Que cheiram mal, os que condimentam propósitos para a loucura
Aqueles que não mentem nunca. Os que sussurram «queres vai
Roda a maçaneta, dá um passo em frente, e está feito.»
Os únicos incapazes de se negarem à vida e aos seus caminhos

Contraditórios e tumultuosos como águas duma tempestade.

terça-feira, agosto 5

LIÇÃO Nº 1

Esperas a velhice e vês-te velho
É isso que ambicionas, aldrabas-te
E achas que a velhice é o teu fim.
Quase vejo as tuas rugas na ânsia
Periclitante de atingires o teu objectivo.
Seria melhor para ti morreres novo
Mesmo depois de muitas vicissitudes, de
Anos a fio a percorrer estradas gastas
Reduzidas a pó. A ambição é tramada
Leva-nos à velhice. É teu desejo
Morrer velho, vê lá tu, para quê?
Que desejas morrer, faz sentido
Disso não foges, mas podes escolher
Para além do mofo da tua casa. Para
Quê morrer velho se sendo tu novo
Já pensas como um velho realizado?
Nunca esperes nada, falo por experiência própria.
Esperar é morrer, é ver o mundo ruir em nós.
Morre jovem e vê tudo a passar, flashbacks
Aguarda apenas a morte, a cada instante.
Não queiras morrer velho, enceta a morte.
A cada gesto morre e renasce, envelhece
Despreocupa-te. Nunca queiras morrer de velhice

domingo, agosto 3

TEORIA TRISTE IRONIA

Era especialista incontestável
Em assuntos do coração
Era terapeuta e conferencista
Há mais de vinte anos

Até que num dia de folga,
Morreu de ataque cardíaco.

sexta-feira, agosto 1

O VERÃO

Quanto ao verão: esse período nefasto e quente
Não apresenta qualquer talento para a chuva, diga-se.
Como o mundo que se concentra excessivamente
Para proferir um assobio magrinho
E acaba por tropeçar de maneira desastrada,
Caindo duma altura
Desagradável,
E falecendo. O verão, de facto
Seria insuportável, não fosse
O futuro e a cerveja.

Gonçalo M. Tavares