segunda-feira, outubro 13

VIRAR A PÁGINA

Este espaço fechou e não foi para obras, fechou. A partir de agora batam noutra porta. Mas não se preocupem, é já aqui ao lado.

sexta-feira, outubro 10

COMUNICADO À LIBERDADE

A Ordem dos Poetas, 
ordem magna das cartas à perplexidade,
vem por este meio anunciar
que o poeta A foi demitido do seu cargo 
de Sumo Pontífice da Liberdade.

A razão, tão simples como óbvia, 
vem do facto de tal sujeito
exercer cargos contraditórios à legislação metafísica
desta ordem sobre o caos.

Sendo assim, sem mais delongas 
pede-se a A que se dirija ao seu gabinete 
e faça um relatório de arrependimento.
De seguida, depois de arrumar tudo a que pertence
que meta o pé na rua.

Já lá fora, pode queimar o que escreveu.

quinta-feira, outubro 9

INDESEJÁVEL

Não me deixa passar o guarda.
Ultrapassei o limite de idade.
Provenho de um país que já não existe.
Os meus papéis não estão em ordem.
Falta-me um carimbo.
Preciso de outra assinatura.
Não falo a língua.
Não tenho conta no banco.
Reprovei no exame de admissão.
Extinguiram o meu posto na fábrica imensa.
Desempregaram-me hoje e para sempre.
Não tenho nenhuma cunha.
Levo aqui deste mundo vasto tempo.
E os nossos amos dizem que já é hora
de me calar e de me fundir com o lixo.

José Emílio Pacheco

quarta-feira, outubro 8

ISSO DO AMOR

Não me venhas com histórias
eu avisei-te, isso de te juntares
é meio caminho andado para a morte.

Eu já te expliquei. Eu hei-de
um dia, mas não é de ânimo leve, isso
de dar mais um passo à frente
às vezes, faz-se de costas.

Se pensas que me sinto feliz
não sinto, perdi-te meu amigo,
agora estás preso por uma trela
que só te permite ligar de vez em quando.

E quando apareces, para surpresa minha,
trazes contigo essas histórias previstas
acompanhadas por um charro proibido;

sabe-me bem, eu que já nem fumo
fico contente: mesmo com o que contas

agora imagina se frequentemente.

ARS POETICA

Escreve cada um dos teus poemas
como se fosse o último.
Nesta era, atomicamente saturada,
carregada com terrorismo,
voando com velocidade supersónica,
a morte chega com uma brusquidão aterrorizadora.
Envia cada uma das tuas palavras
como se fosse a última carta antes da execução,
um apelo gravado no muro de uma prisão.
Não tens o direito de mentir,
nem o de brincar às escondidas.
Não terás simplesmente tempo
para corrigir os teus erros.
Escreve cada um dos teus poemas,
concisamente, impiedosamente,
com sangue - como se fosse o último.

Blaga Dimitrova

FOLHETO

Sou o comprimido calmante.
Actuo em casa,
sou eficaz na repartição,
sento-me no exame,
apresento-me em tribunal,
colo minuciosamente a louça partida.
Basta que me tomes,
que me ponhas debaixo da língua,
que me engulas
com um copo de água.

Sei o que fazer na desgraça,
como aguentar a má notícia,
diminuir a injustiça,
desanuviar a falta de Deus,
escolher o chapéu de luto a condizer.
Por que esperas?
Confia na piedade química.

Wislawa Szymborska

domingo, outubro 5

CARTAS

Escreves-me cartas, sou o destinatário
da tua solidão. E sempre compreendo
tudo, mesmo o que não dizes, o que tinge
as entrelinhas de um branco desespero

que é tanto teu como meu: não tens
quem te salve, envelheceste, trataste mal
de um jardim que não chegou a vingar.
Se nos cruzássemos nas ruas desta cidade

entre desconhecidos de toda a sorte, talvez
nos sentássemos a falar da nossa vida, isto é,
de como vamos ficando cada vez mais orfãos
de nós próprios. Ou, pensando bem, talvez não.

Rui Pires Cabral

sexta-feira, outubro 3

APONTAMENTOS SOBRE A POESIA MODERNA

a poesia avança há muito tempo, embora devagar;
tu não és tão velho como Eu sou
e Eu consigo lembrar-me de ler
revistas onde no fim do poema
dizia:
Paris, 1928.
isso parecia fazer alguma
diferença, e assim, aqueles que podiam
(e alguns que não podiam)
foram para
PARIS
e escreveram.

Eu também sou suficientemente velho para lembrar
quando os poemas faziam referências aos deuses Gregos e
Romanos.
se tu não conhecesses os teus deuses não eras um
bom escritor.
e, se não conseguisses escrever um verso em
Espanhol, Francês ou
Italiano,
tu não eras definitivamente um bom
escritor.

há 5 ou 6 décadas atrás,
talvez 7,
alguns poetas começaram a usar
eu em vez de Eu
ou
& em vez de e.

muitos ainda usam eu
e muitos continuam a usar
&
pensando que é poeticamente efectivo e
actualizado.

e, a mais velha ideia ainda em voga é
que se não consegues entender um poema é
quase certo que é
um bom poema.

a poesia ainda avança devagar, penso eu,
e quando todos os mecânicos de automóveis
começarem a trazer livros de poesia para ler
durante o almoço
só aí saberemos de certeza que estamos a avançar
na direcção
certa.

&
disso
eu
tenho a certeza.

Charles Bukowski

(pescado daqui)

SEF

Na vertigem da noite
um carro cai embriagado 
pelo breu. O destino
aguarda a chegada 
dos pesos. Tahar, o pai 
com uma felicidade pura
atrás do balcão, guarda
um sorriso para quem chega. 
Bondoso, cumpre o sonho já 
gasto por aqui: divertido

apaga fados como 
quem reacende isqueiros. 

quinta-feira, outubro 2

MINUTO

Escreves, a contragosto, a contravoz, mão contra mão contra o papel, sólido, irrespirável (difícil engolir o coração com a garganta, mais fácil fazê-lo com as palavras), corpo dor, cego dor, contravida que te insiste viver (escavafunda, cegafunda, terrinsiste, ceguinsiste). Diverges, distrais, sabes que se te calasses a dor seria ensurdecedora. Prossegues, escutas com atenção, medes as palavras uma a uma, esculpes o seu rosto sem perdão (no fundo, talvez acredites mais do que acreditas, talvez esperes mais do que a esperança nenhuma que trazes). Minuto a minuto não morres. Palavra a palavra não morres. Por vezes parece que apazigua, como se o nó afrouxasse e o ar se tornasse um pouco mais claro ou (outra imagem) um intervalo se abrisse entre muro e muro (ouves a chegada do camião do lixo, o ruído das bombas hidráulicas a movimentarem os braços mecânicos, sobem, descem, voltam a subir, voltam a descer, sentes-te menos só, consegues já respirar, talvez até consigas sossegar, apagar a luz, adormecer). E é só por isso.

Jorge Roque