quinta-feira, março 27

DA MAGIA DOS TEUS DEDOS

Sempre que estou na sua presença
Apenas eu e o seu corpo magnético

As minhas mãos
Ganham uma força férrea delicada
Que lhe percorre o corpo

A sua rata é quente
Uma rata que a contraria
Que transforma o seu não
Num sim ofegante do desespero consentido
Voz imersa na panóplia dos sentidos

As suas ancas são sedosas
Como lombinhos em vinha de alho
Impelem-me a beijá-las
A ferrá-las ao de leve e agarrá-las firmemente

Os seus seios
Voltas perfeitas suculentas

O seu cabelo
Lianas encaracoladas e selvagens
Emaranhado labiríntico que faz de mim
Fantoche da sua sensualidade capilar

O seu corpo

Contrai-se
Estremece
Arrepia

Diz que não diz que sim
Torna-se veículo
Do instinto mais primitivo

A sua voz
Sussurra injustiça
Relembra-me que tenho que ir

Que vai ter que se masturbar

Que não quer masturbar-se porque vicia

Que a solidão na cama
Relembra meus dedos
Que variam na amplitude

Desejo lânguido
Dos seus lábios rosados

INTERRUPÇÃO TRIANGULAR

Algures, num café de Gaia, a meio duma conversa:

-Ó Vitor, desculpa interromper, arranjas-me um cigarro?

-Na boa, pega.

-Obrigado Miguel!

-Carlos?! Chamaste-me Carlos?!

segunda-feira, março 17

"TRABALHO NOCTURNO"

Chama-se simplesmente Zé. Chegou vindo do breu da noite. Apareceu do outro lado da vitrina como se do nada. Pediu uma Super Bock. Demorou a pagá-la, questionei-me e apressado pedi-lhe o dinheiro, já depois de ter bebido uns dois golos da lata. Lá fora, uma noite aparentemente fria, uma noite de Inverno que finda. Perguntou-me se tinha cara de ladrão, olhou-me desconfiado como troco da minha pressa igualmente desconfiada. Perguntou-me também se queria beber alguma coisa, estava disposto a pagar, a dele e o que eu quisesse e pudesse beber. Começou a desenrolar a sua alma.

“Tenho dinheiro, vim agora da Nigéria. Agora não faço nada, apenas bebo, fumas charro? Não? Eu fumo. E bebo! Gosto de beber. As pessoas aqui todas me conhecem. Sou alcoólico para todas. Mas sou homem. Este país é uma merda. Estou a ser filmado, não? Não percebo, aquela câmara da última vez que cá vim estava a apontar para mim, onde está a câmara que me filma? Eu pago, mas onde está a câmara que me grava. Não há? Olha, para veres como sou alcoólico, vês? Está vazia! Ando sempre com ela. Whisky?! Não! Brandy! Gosto de beber, sou trabalhador, vim ao mundo para trabalhar, não tenho medo do trabalho, mas todos estamos cá para trabalhar, não me assusta, quando tenho que, trabalho! Sempre queres beber alguma coisa? Eu pago! Bebe lá! Um sumo, água?! O que quiseres! Não queres?! Não há problema. Pareces ser um gajo fixe! Já agora, vivemos numa sociedade democrática, é democracia? Acreditas na democracia? Em quê que acreditas? Em nada? Não acreditas em nada? Eu acredito. Não sou burro, que idade tens? Já corri mais países do que a tua idade. Podia ser teu avô, ouve-me, o que é preciso é isto, sermos sinceros, livres, o que importa é ser livre, somos livres? Eu sou, quando tenho que trabalhar trabalho, mas gosto de beber, sou alcoólico! Posso fazer um charro? Aqui? A câmara está a filmar? Posso? Olha, para fazer o charro. Estás-te a rir. Vou fazer então. Dá-me outra Super.”

Prosseguiu assim pela calada da noite, falador, falando de tudo ao jeito do álcool.

“Um dia vou-me, mas será que vou mesmo? Será que fico mesmo depois de morto? Fico!? Pareces inteligente, mas digo-te, não leves a mal, a cara é o espelho da alma, tu és um gajo porreiro, eu sou alcoólico, mas tu és um bocado aluado, não leves a mal, notei. Não levas a mal? Estou surpreendido, já tenho uns anos de vida e fico surpreendido que me digas que depois de comido pelos bichos permaneço nas pessoas, nem que seja nas que dizem que sou alcoólico. Sou daqui. Não sou mais do que os outros. Dali de trás. Vim da beira da ponte. Da escarpa!? Nada. Mas pensas que não sei o que é branca?! Camarada gosto de drogas, LSD, coca heroa?! Já estive preso, agora trabalho, para os meus filhos. Trabalhei, agora tenho guita, agora bebo, fumo umas ganzas, sou livre! Estou a ser filmado? IDE FILMAR O CARALHO! SOU LIVRE! O teu patrão não tem mais do que eu, não o conheces? Não conheces o teu patrão?! É uma tristeza, roubam, só roubam. Dá-me outra Super Bock! Eu pago, eu tenho dinheiro! Sou alcoólico! Não me devo preocupar com o que os outros pensam? Se sou feliz? Sou. Sou alcoólico, pensava como tu, mas com a idade mudas, sabias? Sou louco não sou? Somos todos loucos?! Eu sou louco, sou alcoólico, mas trabalho quando preciso!”

Prosseguia aprofundando o monólogo sarapintado por sorrisos opiniões e perguntas minhas, uma conversa que tenho pena que se tenha perdido na integridade da noite. Clientes vinham clientes iam. Falava com todos, nenhum ouvia e fugia, todos paravam para o ouvir, gargalhava e dizia coisas com o seu tom de voz cada vez mais pesado e arrastado. Não esqueço o que disse a um velhote que apareceu.

“Boa noite, bem disposto? Olhe, você que é velhote, eu também sou, mas você é mais velho! Você acredita em padres, na igreja? Ouça o que lhe digo, não acredite! Os padres vieram ao mundo para enganar os velhinhos, ao menos não andam disfarçados! Não gosto de padres! Gosto de beber! Sou alcoólico, tenho uma hepatite, sou louco!”

O velho não mudou de cor, deu-lhe um forte e sincero aperto de mão, foi-se embora. Continuou a falar, a dizer coisas, coisas soltas, bocados capitais.

“Quero mais cerveja, quero outra! Vou fazer outro! A que horas sais? Queres fumar um? Eu dou-te! Não queres? Eu moro já ali.” Pois é. Há que trabalhar. Eu não trabalho, agora, tens a certeza que não me estão a filmar?”

A noite depressa se fez dia, depois de muita indecisão e despedidas, de mais cervejas e charros lá foi, de rastos, pesado como um pedaço de chumbo no fundo do oceano.

terça-feira, março 11

CRÓNICA DA FACA DOS DOIS GUMES

Esta era tecnológica revela-se surpreendente apelo. Lado de baixo pelo lado sobre.

É tido como certo, por mim, este passo firme em frente para a liberdade que gradualmente e em aprendizagem trás à superfície o contra-senso maior do abuso da liberdade como forma de prisão. Novas portas abriram-se ao rodar-se as suas maçanetas e fizeram-nos ver mais uma ala da continuidade na liberdade instituída.Foi o que percebi da minha liberdade. Abre-se uma nova porta, explora-se o espaço no seu interior e quando tentamos voltar alguém guardou ou perdeu as chaves para sair, um contra-senso, como referido -liberdade delimitada pela observação transformadora. A liberdade, caro leitor, é uma faca de dois gumes cada vez mais bem afiada na pedra pomos temporal: na sua ponta encontra-se o choque entre lâminas que se esbatem num único vértice. É com tristeza, mas com perfeito espírito de integridade e identificação, que vejo a liberdade de hoje que tanto me guia e me leva à compreensão, na parte da lâmina que já penetra na carne ao mínimo toque. A guerra das liberdades, como desde há muito tempo, continua nos seus dois campos da batalha, liberdade contra liberdade, uma luta pelo mesmo direito, o direito à Liberdade Absoluta, a última, aquela palavra metafísica inventada por nós da qual desconheço os contornos e reconheço apenas o veículo da essência. Este símbolo que tanto apregoamos no espírito dos mais diversos postos da barricada, que se concretizará no culminar da vontade colectiva, vai ser elevado ao ponto de divindade e eu desconheço, para já, qual vai ser o seu valor fixo – isto se já não foi, agora mesmo, e por distracção minha, afixado naquela vitrina que desconhecemos mas que tem a informação burocrática necessária para nos inscrevermos na liberdade dos vencedores da guerra detentores da verdade. A liberdade, como foi definida por senhores do meu passado, só existe no espírito. Hoje, mais do que ninguém que não queira, percebo que só na alma se condensam os sentidos da vida, no recuado da Edificação da Liberdade, o local para onde vamos sonhar acordados. E foi aí, nessa transposição do corpo por parte da alma, que encontrei o ponto comum que rege o nosso objectivo cada vez mais exigido como batalhadores do bem comum e colectivo.

(A minha preocupação pelo colectivo mais do que uma posição esquerdista pessoal, mesmo sendo suspeito por ser canhoto, é uma posição me vem do âmago e uma sintomática confissão da constatação.)

A tecnologia, hoje, é um utensílio indispensável, principalmente a Internet (até lhe digo leitor, que o Word reconhece automaticamente a sua palavra com um w maiúsculo e Internet com i de igual tamanho, enfatizando assim, duas pequenas partículas do universo tecnológico desmultiplicado), sem essa ferramenta, de base Suiça a partir do canivete, não conseguiria de maneira alguma explanar a minha dimensão opinativa, e sem computador então, nem se discute. Lembro entretanto que vivemos num país em que computadores nas escolas não faltam, mas aquecedores em certas não é coisa que abunde, coloco a hipótese de que talvez os computadores venham sem ventilação e o seu consequente sobreaquecimento seja uma útil fonte de calor. Certamente pensarão que sou contra os computadores nas escolas, mas não sou, sou apenas contra a colocação de degraus sem outros anteriores a servir de base. Sirvo-me desta figura de estilo prosaica e até um pouco redutora, para que entenda que os tempos em que vivemos são de liberdade, como disse, faca de dois gumes.

Por um lado é óptimo que os jovens alunos percorram a Internet nas suas escolas como ponto de partida para uma opinião vincada sobre o mundo, ou até, para uma adaptação ao seu mundo que se transforma acelerada e desgovernadamente.

Sou um egoísta caro leitor, falo-lhe em tudo isto para me revoltar sob a capa das palavras contra o cerco cada vez mais fechado à Internet. Irrita-me profundamente perceber que o próprio espaço cibernético tende a ficar cada vez mais burocratizado e controlado, tal como todos os meios de comunicação anteriores. Mais um veículo flamejado pelo poder, pelos donos da liberdade, pelos primeiros a chegar ao cume da faca. Daí olhar para trás e sentir ainda a aura da antiga literatura, da antiga música, da antiga arte dos tempos que tinha outra liberdade mesmo enclausurada. Sinto as saudades a baterem-me do alto dos meus tenros vinte e três anos de idade. A pureza perdeu-se, a liberdade que precisamos perdeu mais um dos seus aliados, não sei quando foi isso precisamente, mas sinto-o.

Cresci num bairro, num desses bairros longínquos que parecem já não existir até que percebemos que ainda existem e servem de catapulta para as nossas memórias de infância. No tempo em que não havia Internet nem computadores nem consolas nem falsidades nem aquecedores nos dias de frio, nem frio tampouco. No tempo em que a puerilidade permitiu que hoje veja o mundo com olhos de ver. O mesmo tempo que me dá agora tempo para escrever tudo isto nesta odisseia pelo mundo que é o meu.

Acredito que me leia e fique a achar que sofro de envelhecimento precoce, talvez sofra, este mundo fez de mim um caco de pote do século vinte e um disperso pelo chão. Vivemos numa liberdade individual partidos. Somos cacos que entre os espaços que nos distanciam formam diversas teias que por sua vez formam uma só. A nossa liberdade resume-se a esses espaços cada vez mais entrosados entre si.

Mesmo assim, sinto-me vivo, sinto-me contínuo da luta das palavras. Sinto-me em liberdade quando escrevo, quando choro lágrimas de tinta e desenho sorrisos amarelos e necessários. Tenho liberdade para tudo isso e para tudo mais que me entreguem de bandeja sem folhetim informativo com asteriscos e letras minúsculas.

Sinto-me.

Tenho a liberdade para agir nos escaparates da acção que me tiraram, pois só me resta esta, a estafeta entregue pela anterior geração que não distinguiu liberdades, a geração do vinte cinco de Abril, a revolucionária, a que se cansou e se adaptou ao admirável mundo novo de liberdades que lhes surgiu como uma aparição -uma luz que os cegou e apagou dos seus olhos o brilho da liberdade.

Ainda hoje neste século, surgem políticos a apregoar ao progresso. Essa palavra tão bonita, tão cheia de pompa e circunstância, e digo circunstância porque a circunstância pós ditadura da velha senhora fez de nós seres esfomeados e finalmente sincronizados com o mundo. Essa palavra tão bem empregue pelo nosso monsenhor ministerial que aproveita a sua liberdade expositiva e argumentativa para descaradamente mentir e ser aceite por nós, seres libertos, que tão facilmente acreditamos que somos livres mesmo que não das suas mentiras.

Não vejo, por tudo isto, Portugal como um buraco negro na Europa, nem culpo os lutadores pela liberdade de expressão do meu passado pelo estado deste meu país com um governo digno de nos pôr a chorar lágrimas de cebola. Somos agora seres globais (a Internet é um dos meios que mais bem argumenta em prol desta afirmação), e como tal, o nosso estado, para lá da governação má, é também influenciada pela incestuosa economia mundial, pela imensa rede que se vai ocupando do espaço cada vez maior entre nós.

Não tenho medo do espaço entre as pessoas, a razão é muito simples, cada vez mais me isolo e quero menos dos outros, irrita-me profundamente aperceber-me do reflexo dos meus defeitos em todas as outras faces com que convivo no dia-a-dia.

O que me assusta e aterroriza é este alastrar incessante deste cancro que nos prende em si, este murmúrio que mal se percebe mas que se ouve. Esta invasão do espaço por uma série de necessidades que se ramificam em propósitos que até há bem pouco tempo não eram tão fundamentais mas que agora nos prendem e nos afastam de tudo o resto que é mais capital que todo o capital das multinacionais sem escrúpulos de todo o mundo criadas pelos fungos dessa ciência a que se chama economia.

A liberdade de escolha é portanto, e digo-o com certeza, uma forma de liberdade que é muitas vezes confundida com a possibilidade de ser livre. Usada como arma de arremesso, em jeito de quem atira com um ramo de flores, proporciona a tal sensação de liberdade que é, como disse, de escolha. Podemos entender liberdade de escolha como e muito contemporaneamente ter acesso a um sem número coisas nas mais diversas variantes e necessidades. Excepto derrubar um governo. Isso é demasiado complicado, a nossa liberdade de expressão já não chega para a liberdade de acção que têm e criaram.

Cheio de escrever e desta liberdade pura que afinal não é assim tão pura quanto isso, encerro esta crónica com as pálpebras pesadas e desejoso de voltar à cama mais uma noite para me perder na outra liberdade pura que entretanto me escapou mas que em boa hora e tarde chegou: o mundo dos sonhos em que vivemos de olhos fechados.

segunda-feira, março 3

O TOLDO VERMELHO

Uma bela noite de verão. A lua mingua, as luzes captam os pedaços iluminados de palavras que murmuram na consistência de pessoas. A temperatura é agradável, o álcool acompanha o silêncio da noite que se faz em copos de vidro abençoados. As cabeças são muitas, movimentos perpétuos na sonoridade aconchegante que tudo mistura: volumes gargalhadas sorrisos e cheiros. Ali estou, descontraído em ritmo sereno que ouve, vê, fala e passa ao lado. O movimento é o centro de gravidade pendular que me faz caminhar na noite. A pele está quente enquanto se gesticula palavras em gestos extraordinários. A melodia vai em frente, sou animal natural da realidade em que vivo. São horas aveludadas enquanto se pede mais um fino. Uma felicidade de bêbado vem-me bem estampada na cara que sorri. Vivemos todos numa sincronia momentânea. É uma noite de verão quente, as palavras sob o toldo vermelho fazem ouvir passadas mais amplas. Somos todos filhos do nosso tempo, sem deus, sem pátria inquestionável, e com toda uma vontade adormecida de ser feliz. Vivemos todos da diferença que é unanimidade. Somos felizes em nós, nas alturas em que ecos de conversas se explanam pelas estrelas que encimam a noite que se vai fazendo iluminada de vida. O ambiente está calmo, os bilhares repousam sob o olhar que é o meu. Tudo se compreende, nada desalinha.