sexta-feira, maio 30
A UMA VALSA INÓCUA
Invadem-se campos e destroem-se culturas de flores milenares
Os amantes de flores choram de raiva e gritam não e nunca!
Sentem o seu mundo de sonhos inebriantes a ceder
A ruir como água suja a cair para um esgoto ao sol
Tão cedo imaginariam esta chegada
Andavam demasiado ocupados na sua insipidez
No seu nada para a vivência exceptuada ao vegetalismo
Agora insurgem-se finalmente insurgem-se
Estão vivos finalmente vivos e com força para viver
Desde sempre se quedaram nos gestos vestidos
Cada vez mais embalados pela velocidade de tudo
Adormecidos fetos da acção hermética que tanto delicia
Não percebem o que se propõe ao calcar os seus jardins
Não percebem só porque estão demasiado ocupados em podas
Não percebem a força verosímil das palavras
Não percebem nada porque atribuem a culpa à própria morte
Coitados
Tenho pena da vossa ignorância mas percebo-a
Tenho pena de mim até mas percebo-me e aceito-me e aceito-vos
Tenho pena de todo este mal entendido e da vossa mesquinhez de viver
Mas afinal ainda se impõem
Ainda lutam fortes e incongruentes
E isso maravilha-me e a isto chama-se optimismo
Talvez a dose de optimismo que aconselham para as regas
Não têm com que se preocupar
Não chorem mais não gritem mais não me odeiem
Canalizem tudo isso contra os vossos corpos
Lutem contra a vossa ignorância e passividade
Deixem de me ver morto só porque sou todas as vozes
Todas as sombras e todos os males e tudo o que é vosso
Lutem como animais espumosos
Ajam por instinto e esqueçam-se de pensar
Percebam o que escrevo duma vez por todas
Percebam que a escrita também tem propósitos
Percebam que a arte só é fútil quando como vocês
Abram os olhos para não me repetir
Abram os olhos e enjoem e ajam e sejam
Abram os olhos e vejam a razão pela qual escrevo
A minha pretensão não vai para lá dos vossos gestos
Não é mais que um meio para vos espicaçar
É uma pretensão escrita maior que a própria religião
Uma pretensão contra a religião
Uma pretensão contra qualquer tipo de moral
Uma pretensão pretensa em ódios
Uma pretensão que nos arruína e nos eleva
É a ira a roer as concavidades do corpo
A força do teu sangue podre e nauseabundo
A condensação do que afugentas cambaleante
O limite a destruir todas as barreiras da incapacidade
Tudo serve para te ver vivo
Para perceber que ainda te mexes
Que a arte está morta mas pode respirar
Que o cheiro a mofo que dela exalas é apenas circunstancial
Que o requinte na arte é só mais um luxo
Uma característica duma nova classe
Que a beleza na arte é uma necessidade
Uma via para desligar o mundo e criar sobre ele
Que o mundo é a arte e a arte é o mundo
Sois animais convictos dispostos a selar pactos
Animais ecléticos pela seriedade de Hipócrates
E o discurso paralelo é apenas mais uma arma
E vocês só não morrem porque não quero
Quero-vos vivos a fervilhar em ideias
A construir tudo o que destruo com afinco
Para lá das palavras para lá dos sonhos
Percebam o que escrevo duma vez por todas
Percebam que a escrita também tem propósitos
Percebam que a arte só é fútil quando como vocês
Que sois animais convictos dispostos a selar pactos
Animais ecléticos pela seriedade de Hipócrates.
quarta-feira, maio 28
QUEM É QUEM?
Um homem louco é aquele cuja maneira de pensar e agir não se coaduna com a maioria dos seus contemporâneos. A sanidade mental é uma questão de estatística. Aquilo que a maioria dos Homens faz em qualquer dado lugar e período é a coisa ajuizada e normal a fazer. Esta é a definição de sanidade mental na qual baseamos a nossa prática social. Para nós, aqui e agora, são muitos os de mentalidade sã e poucos os loucos. Mas os julgamentos, aqui e agora, são por sua natureza provisórios e relativos. O que nos parece sanidade mental, a nós, porque é o comportamento de muitos, pode parecer, sub specie oeternitalis, uma loucura. Nem é preciso invocar a eternidade como testemunho. A História é suficiente. A maioria auto-intitulada de mentalmente sã, em qualquer dado momento, pode parecer ao historiador, que estudou os pensamentos e acções de inumeráveis mortos, uma escassa mão-cheia de lunáticos. Considerando o assunto de outro ponto de vista, o psicólogo pode chegar à mesma conclusão. Ele sabe que a mente consiste de tais e tais elementos, que existem e devem ser tidos
Aplicando estes dois testes, o do historiador e o do psicólogo, à maioria mentalmente sã do Ocidente contemporâneo, que verificamos? Verificamos que os ideais e a filosofia da vida agora geralmente aceites são totalmente diferentes dos ideais e da filosofia aceite em quase todas as outras épocas. O Sr. Buck e os milhões por quem ele fala estão, esmagadoramente,
A Natureza permanece inalterável, quaisquer que sejam os esforços conscientes feitos para a deformar. Os Homens podem negar a existência de uma parte do seu próprio espírito; mas o que é negado não é por isso destruído. Os elementos banidos vingam-se nos indivíduos, nas sociedades inteiras. Uma coisa apenas é absolutamente certa quanto ao futuro: que as nossas sociedades ocidentais não se manterão por muito tempo no seu presente estado. Ideais loucos e uma filosofia lunática da vida não são as melhores garantias de sobrevivência.
Aldous Huxley, in "Sobre a Democracia e Outros Estudos"
A 1ª AVENTURA CELESTE DO SENHOR ANTYPIRINE (EXCERTO)
Nós declaramos que o automóvel é um sentimento
que já nos animou em demasia na lentidão das suas abstracções
e os transatlânticos e os ruídos e as ideias. Entretanto
exteriorizamos a felicidade, buscamos a essência central
e ficamos muito contentes por a esconder. Nós não queremos
contar as janelas das maravilhosas elites, pois que Dada
não existe para ninguém e queremos que todos percebam isso mesmo
uma vez que é da varanda de Dada, garanto-vos, que se podem ouvir
as marchas militares
e descer cortando o ar como um serafim nos balneários públicos
para urinar e compreender a parábola.
Dada não é loucura, nem sabedoria, nem ironia – olha para cá
a ver se me vês
gentil burguês.
A Arte era um jogo, uma noz, as criancinhas
juntavam as palavras com um guiso na ponta e depois choravam
gritavam a estrofe e calçavam-lhe botinhas de boneca e a estrofe
transformava-se em rainha para morrer um bocadinho
e a rainha transformava-se numa baleia e as crianças corriam
corriam até perder o fôlego.
Então chegaram os grandes embaixadores do sentimento
gritando historicamente em coro
psicologia psicologia ia ia
viva a França!
Nós não somos ingénuos
nós somos sucessivos
nós não somos o contrário de exclusivos
de certeza que não somos simples
e sabemos perfeitamente discutir a inteligência.
Mas nós, Dada, nós não somos da sua opinião
visto a Arte ser uma coisa pouco séria
asseguro-vos
e se vos apontamos o Sul e o crime
para dizer empanturradamente ventilador
arte negra e sem humanidade
é para que o prazer vos sufoque
queridos ouvintes
Tristan Tzara
terça-feira, maio 27
INKZ
As precisões da produção
têm efeitos abruptos na intimidade
Qual o peso da alegria?
O tamanho da agonia?
A altura do desejo?
O comprimento da resignação?
Só nas fábricas evasivas
é que ainda se produzem emoções
em modelo Revolta
tamanho XL
Todas as identidades são dançantes
antimanifesto para uma arte incapaz,
Boaventura de Sousa Santos
segunda-feira, maio 26
A CONDENAÇÃO DO ASSASSINO
Ao extremo de sentirmos um orgulho medonho
O mundo gira e chocamos uns com os outros
Ignorantes ao ponto de termos uma razão suposta
Que nos alimenta o ego monstruoso
A fonte para a coerência
Subliminar processo para a credibilidade
A que nos move cheios de convicções
Rumo ao destino ultrajado pela vontade
O veículo da inteligência que nos aprisiona
Que nos faz sangrar nesta banheira sideral
A que ilude, tortuosa e selvagem
Para lá de todos os sois de todas as luas
De todas infinidades expositivo/argumentativas
Que nos levam até à sapiência do egoísmo;
Que estratifica os homens e sacrifica os sonhos
Ao ponto de levarmos as discussões que nada resolvem
A um mero ponto, a um simples e carnal umbigo
Um fio que nos aprisiona e amordaça
Nadadores aflitos na corrente do rio
Mergulhadores da solidão
Ouvem-se os hinos ao amor na discórdia
Símios refractados pelo colectivo sombra
Umbilicalmente ligados pelo medo,
Limbo da razão de todos factos
De todas as tempestades e de todos os céus
Que nos fazem voar inseguros,
De todas as mágoas de todas alegrias
De todos cantos dos pontos mais remotos
Desde o eremita até ao integro ser
O eremita tem medo
Assusta-o toda a dança mortífera
Todo o orgulho construído
Todas as discussões petrificadas
O integro ser, igualmente o medo
Assusta-o toda a solidão mortífera
Todo o orgulho destruído
Todo o ostracismo petrificado
E toda a razão se esvai
Como sangue a tingir o chão pisado
Toda a coerência se afunda
Como um barco com um buraco na proa
Tudo arde até que só nos restam cinzas.
Da razão, da coerência, do eremita
Do integro ser, para sempre o pó
Pequenos grãos de nada.
E das cinzas, do pó, tudo cresce de novo despido
Desprovido de qualquer peso, de qualquer
Denominação explicação necessidade
Somente a uterina sabedoria nunca escrita
Jamais percebida, a sabedoria da pureza das balanças.
Mas como estamos tão bem neste solo
No local onde o querer é tudo o que temos
Despoletar fisgado para qualquer infinito
Como se o amanhã fosse a palma da nossa mão.
Fingimos. Reagimos. Acreditamos no que quisermos
Até que algo nos corta e faz sangrar, um intercalar
Existencial que nos imobiliza. Restabelecemos
O ritmo, a marcha escolhida pelo espírito, triagem
Que nos capacita para tudo, deuses terrestres para
Todos os sonhos e todas a batalhas e todos os fins.
Não importa o chão que pisamos, somos capazes de tudo.
Não importam os sorrisos os gritos agoniantes as gargalhadas
Somente as trincheiras e o conforto da nossa singularidade.
Nem tampouco os confrontos os medos os festins e o amor
Tudo terá um fim e nessa altura tudo cairá sobre nós como lâminas
Acutilantes arrependimentos independentemente do passo tomado.
Para quê festejar para quê chorar para quê o que quer que seja?
Nesta odisseia de pesos tudo vale todos os pesos diferem
Mas todas justificações e todas as loucuras são iguais a nada,
A rigorosamente nada. Hoje nada vale e tudo acontece, hoje
Mais do que nunca, o chilrear dos pássaros é igual ao roncar
Dos porcos que felizes chafurdam na lama da sua naturalidade.
Não somos mais do que fantasmas. Carne púrpura
Que se move para lá da temperatura dos corpos
Somos ardentes signos sob a batuta da razão
Sempre ao encontro dum argumento duma desculpa
Duma solução inalcançável prestes a ser agarrada
Pelos grilhões da ignorância infecciosa.
O relógio dá voltas e voltas
Numa espiral que se esconde nos ponteiros.
A ampulheta vira e revira
Sem nenhuma ordem definida até à
Horizontalidade, até à morte do tempo até
À morte do seu esplêndido símbolo, até à condenação
Do único assassino de sempre.
terça-feira, maio 6
AO DEDILHAR OBSCURO
Inventaram-se os espelhos
Multiplicaram-nos
Do primeiro reflexo
Aos múltiplos reflexos
Foi assim que se fez o mundo
De espelhos apontados para espelhos
Imagens das imagens
Veículos apontados para o infinito
A verdade a decompor-se
A contaminar-se por ilusões refractadas
Desde a ilusão mais pura
Até ao destino mais incerto
Desde o ponto
Até este novelo
Criaram-se as palavras
Os significados
Avivaram-se actos
Brilhos do movimento
A mentira esquecida pelo espelho
Escondida na imagem da verdade
Espelho que oculta todos os espelhos do tempo
Olhamo-nos ao espelho
E só vemos um reflexo
Nada de sério
Apenas uma imagem
Não somos nós
Apenas um espelho que nos aprisiona
Que nos liberta para lá do concreto
Que nos divide e multiplica matematicamente
Foi isto que nos trouxe o espelho
Muito antes de sequer existir
O reflexo do reflexo dos reflexos do reflexo
Labiríntico caminho sem retorno
Espelho que se quebrou e requebra até ao pó
Direcção antagónica que culmina na origem
Assumimo-nos deuses nesse longínquo dia
Criamos e recriamos e moldamos o mundo
Espelho supremo de toda a criação que nos iludiu
Aquando do primeiro reflexo perdido.
(escrito a partir duma frase de Herberto Helder)
BATINAS CASTANHAS
Todos os males e desgraças
A circunferencial cabeça rola pelo chão,
A avarenta tômbola do devaneio
Que me contenta com as ideias no sítio
As prosaicas e arcaicas limitações
Das prisões em cores inventadas
Dos estados de espírito formalizados
Que orientam a multidão sedenta,
As cabeças espetadas entre si, emaranhado da sanidade.
Retiro o meu capacete e galgo
Espezinhado por fobias que se elevam
Que cantam que gritam
Adeus! Não mais existem
Os coros da concórdia as batinas da união
A loucura que não minha.
Adeus! Morri de desastre
Bati com a cabeça, renasci pelo trauma
Pela loucura sobre ombros
Vocifero!
“Unam-se orquestras sinfonias
Da agradável desgraça! Passem a estafeta
Para mim que não tenho mãos
Deixem-na cair no solo inflamado pela massa”;
Os limoeiros enrijecem
Para lá da minha (janela),
Entranham as suas raízes,
Asfixiam o peculiar castanho
Do vento que se vê. O céu,
O poético céu
Armistício da chuva
Espelha as vossas imagens
“O peso dos capacetes assim vos pende
Orientados sinais camuflados rumo ao funil destino”
(Do vidro um sorriso
Uma réstia espelhada
Um brilho lamacento
Quebrado, um caco pontiagudo
Uma espada simbólica
Um corte sangrento na bruma).
“Bem hajam trupes da diarreia!”
Habituaram-me ao ódio
Ao asco moldável nos dedos
Que escorre catarata,
À tinta castanha que me lava a cara
“Adoro-vos!”
sexta-feira, maio 2
TOMBSTONE BLUES
The city fathers they're trying to endorse
The reincarnation of Paul Revere's horse
But the town has no need to be nervous
The ghost of Belle Starr she hands down her wits
To Jezebel the nun she violently knits
A bald wig for Jack the Ripper who sits
At the head of the chamber of commerce
Mama's in the fact'ry
She ain't got no shoes
Daddy's in the alley
He's lookin' for FOOD
I'm in the KITCHEN
With the tombstone blues
The hysterical bride in the penny arcade
Screaming she moans, "I've just been made"
Then sends out for the doctor who pulls down the shade
Says, "My advice is to not let the boys in"
Now the medicine man comes and he shuffles inside
He walks with a swagger and he says to the bride
"Stop all this weeping, swallow your pride
You will not die, it's not poison"
Mama's in the fact'ry
She ain't got no shoes
Daddy's in the alley
He's lookin' for FOOD
I'm in the KITCHEN
With the tombstone blues
Well, John the Baptist after torturing a thief
Looks up at his hero the Commander-in-Chief
Saying, "Tell me great hero, but please make it brief
Is there a hole for me to get sick in?"
The Commander-in-Chief answers him while chasing a fly
Saying, "Death to all those who would whimper and cry"
And dropping a bar bell he points to the sky
Saying, "The sun's not yellow it's chicken"
Mama's in the fact'ry
She ain't got no shoes
Daddy's in the alley
He's lookin' for FOOD
I'm in the KITCHEN
With the tombstone blues
The king of the Philistines his soldiers to save
Put jawbones on their tombstones and flatters their graves
Puts the pied pipers in prison and fattens the slaves
Then sends them out to the jungle
Gypsy Davey with a blowtorch he burns out their camps
With his faithful slave Pedro behind him he tramps
With a fantastic collection of stamps
To win friends and influence his uncle
Mama's in the fact'ry
She ain't got no shoes
Daddy's in the alley
He's lookin' for FOOD
I'm in TROUBLE
With the tombstone blues
The geometry of innocence flesh on the bone
Causes Galileo's math book to get thrown
At Delilah who's sitting worthlessly alone
But the tears on her cheeks are from laughter
Now I wish I could give Brother Bill his great thrill
I would set him in chains at the top of the hill
Then send out for some pillars and Cecil B. DeMille
He could die happily ever after
Mama's in the fact'ry
She ain't got no shoes
Daddy's in the alley
He's lookin' for FOOD
I'm in the KITCHEN
With the tombstone blues
Where Ma Raney and Beethoven once unwrapped their bed roll
Tuba players now rehearse around the flagpole
And the National Bank at a profit sells road maps for the soul
To the old folks home and the college
Now I wish I could write you a melody so plain
That could hold you dear lady from going insane
That could ease you and cool you and cease the pain
Of your useless and pointless knowledge
Mama's in the fact'ry
She ain't got no shoes
Daddy's in the alley
He's lookin' for FOOD
I'm in the KITCHEN
With the tombstone blues
Bob Dylan