domingo, fevereiro 25

O BAILARICO




Ontem, que não foi assim há tantas horas, tive o privilégio de ir a uma daquelas festas em que ficamos felizes por só haver uma vez por ano; a uma festa de aniversário. O convite foi recebido com um certo desdém. Quem me convidou foi um elemento da minha família que fazia nada mais nada menos que quarenta e três anos. O local escolhido para tal celebração foi um restaurante com música ao vivo; um daqueles sítios que nos causa uma indigestão só pelo simples facto de viver à custa de bailaricos à boa moda portuguesa. Entre garfadas e goladas de vinho ia ressoando nos meus ouvidos: Quim Barreiros, Tony Carreira, as de outros tempos badaladas Doce, e outros belos compositores dignos dessa praça musical e ampla que é a música popular portuguesa, vulgar música pimba. A mesa estava repleta de gente que posso denominar de próxima ao meu ser-bom-ouvinte e sempre atento a tudo: ora era entre outros um sujeito que só sabia falar de violência e de porradas orgulhosas devido às faltas de respeito perante o seu cabedal pseudo-imponente, ora era uma pessoa que admiro muito, carregado de brejeirices próprias para a ocasião festiva sempre pronto a fazer rir o mais céptico dos foliões, ou um casal cheio de amor que nem para comer largava as mãos apaixonadas, ou um tipo semelhante ao John Lennon mas numa versão aportuguesada com pinta de galã frequentador daqueles tascos com cortinas à porta que deixam escapar detrás uma linha delineada por um vermelho vivo de tonalidade mais que duvidosa ; e eu! sentado no meu canto, com uma garrafa de muralhas para suavizar e engrandecer tal cenário promissor. Nas mesas circundantes, personagens dum daqueles filmes do Fellini, velhotes emproados, enjeitados com o seu melhor fato para virem ao baile; por vezes como pingas, jovens como eu, aqui e ali, sempre de semblante coberto por um sorriso de alegria por tal visão quase surreal carregada de hilariedade.
A noite começou calma, embora a música soasse pelo salão como bombos arrufados numa rua em dia de fanfarra, as pessoas permaneciam sentadas em frente aos seus pratos, devorando selvaticamente os suculentos nacos de carne e de peixe. De vez em quando, ou melhor, à boa maneira portuguesa, lá se ia empurrando o comer pesado com belas copadas de maduro tinto ou de verde, mediante os gostos e o diâmetro da goela de cada um; até que, consequência de um fígado carregado de álcool e já com as faces avermelhadas, mas não de vergonha, aqueles seres começaram a cobrir-se de sorrisos tão alegres que de repente o salão estava repleto de seres felizes e abstraídos das suas monótonas vidas, bamboleando-se ao ritmo das mais hilariantes e surpreendentes musicas; as velhotas mexiam-se ao ritmo da sonoridade – iam acima e iam abaixo como a música pedia – como jovens cheios daquela energia típica da flor da idade; os velhotes mexiam-se como cobras, e uma vez ou outra tentavam deixar cair – culpando talvez a força bacoreana do vinho - a mão nos cus secos e usados das suas parceiras. Muitas músicas rolaram… Aos poucos, o salão esvaziou para um descanso para recuperar forças e molhar a goela, duas ou três músicas rolaram só com um ou dois casais de idosos a dançar: quais bravos dançarinos duma mocidade de bailarico não perdida! A folia voltou, inflamados pelo álcool cada vez mais senhor dos seus corpos – e do meu também, mesmo permanecendo sentado e de sorriso cada vez mais rasgado na cara -, começou o jogo da cadeira. Cada espaço silencioso intercalado por músicas, fazia as pessoas voltarem ao seu lugar, mas nem dava tempo para enquadrarem o cu na cadeira, começava logo outra bela música e lá iam eles, mais ébrios e felizes do que há minutos atrás, dançar freneticamente sem se lembrarem das mazelas psicológicas impostas pela sociedade que faz dos velhos seres sôfregos; talvez no dia a seguir se queixassem disto e daquilo. Uma vontade de rir assomou-me, talvez fosse o vinho a dar sinais de si. Enquanto observava tudo isto divertidamente, o meu companheiro da direita de mesa lá continuava:

- Conheço um gajo, grande bicharoco, que é segurança do S, ganda maluco, conhece todos os seguranças da noite! Oh moço, uma vez, um gajo veio contra ele na discoteca, não teve mais nada, agarrou-o pelo colarinho, deu-lhe um bojardo arrebentou-lhe a boca toda. Ainda pegou nele e atirou-o para o chão como um fardo de palha. – dizia este tipo de coisas com um orgulho de gorila enquanto enchia o meu copo.

- Foda-se, esse é que bate mal!... – respondia eu enquanto olhava para o copo e sorvia mais uns goles. Bem devagarinho, embalado pela violência da conversa repetitiva que não era mais do que o retrato do cenário dum subúrbio mundial cheio de necessidades e aventuras dignas de um filme, ouvi as mais surpreendentes realidades de dealers de branca; ciganos perseguidores de homens apaixonados pelas suas filhas; gajos carregados de armas, as tropas do exército da urbe; ladrões de chapéus; carros quitados até ao auge da potência mecânica; tarados que vão para quecódremos observar casais a copularem dentro de seus carros, sendo consequencialmente espancados devido à sua curiosidade demencial por dez/quinze homens que formam instantaneamente milícias do sexo automóvel; tudo isto e outras histórias mirabolantes deste mundo que é tão nosso.

Ali, num salão de baile à boa maneira portuguesa, apercebi-me do triste equilíbrio que rege a vivência; senti as mãos bem pesadas pousadas no chão: na mão esquerda estava o peso da abstracção, na direita, o da violência.

Vendo bem, talvez o peso sentido nas mãos tenha sido obra das duas garrafas de muralhas que chupei até ao casco depois duma travessia divertida pelo deserto que é a abstracção!

quinta-feira, fevereiro 22

A LOUCURA


"Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim:


Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas – e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente, a gritar: “Ladrões, ladrões, malditos ladrões!”Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim.E quando cheguei à praça do mercado, um miúdo no telhado de uma casa gritou: “É um louco!” Olhei para cima, para vê-lo. O sol beijou pela primeira vez a minha face nua.Pela primeira vez, o sol beijava a minha face nua, e a minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei mais as minhas máscaras. E, como num transe, gritei: “Benditos, benditos os ladrões que roubaram as minhas máscaras!”Assim me tornei louco.E encontrei tanto liberdade como segurança na minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós."


Gibran Khalil Gibran

quarta-feira, fevereiro 21

AO MONGE SOLITÁRIO

ele era alguém, era o
homem que trazia o mundo às costas,
o seu mundo.
nos seus olhos, algo
que quebra as barreiras da
realidade vigente,
a realidade coberta pela manta negra
que se tornou em vida.
a vida, era para si, afinal
o mundo de todos,
mas no entanto, não era
o mundo criado por ele;
disso tinha ele fugido a sete pés;
só assim conseguia criar o seu mundo,
o mundo de todos os que respiravam
do seu ar
mas que ares do seu pouco tinham;
os seus céus eram mais intensos
eram céus pintados dum azul que só existia em si:
o azul da alma, o azul que esbate todos os cinzentos
todos os negros, todas as tristezas
todas as apatias, todas as realidades.
na sua mão, pesava uma enxada
uma vida inteira
o sonho de uma tarde de inverno
ali, no verde dos seus campos.

domingo, fevereiro 18

TRECHOS DE UM LIVRO SUBLIME

- Quem era não sei - respondeu Cosimo - , mas se andais à procura dum homem que passou por aqui a correr, digo-vos que ele tomou a direcção do riacho...
- Um homem? É um homenzarrão que mete medo...
- Bem, daqui de cima parecem todos pequenos...
- Muito obrigado a Vossa Senhoria! - agradeceram os beleguins, desatando a correr em direcção ao riacho.
Cosimo voltou para a sua nogueira e retomou a sua leitura de Gil Brás. João dos bosques continuava abraçado a um ramo, muito pálido no meio da barba e dos cabelos hirsutos e avermelhados como a erva seca dos campos, cheios de pedaçinhos de casca de árvore, folhas pequenas e agulhas de pinheiro. Estudava Cosimo com os seus dois olhos verdes, muito redondos e espantados; era feio, muito feio.
- Já se foram? - decidiu, por fim, perguntar.
- Sim, sim - respondeu Cosimo, com ar afável. - O senhor é que é o salteador João dos Bosques?
- Como é que me conhece?
- Bem, conheço-o de ouvir falar de si, conheço a sua fama.
- E o senhor é aquele que nunca desce das árvores?
- Sim, sou. Mas como sabe?
- Bem, da mesma maneira... A fama corre.
Olharam-se cortesmente, como duas pessoas de posição que se encontram por acaso e ficam satisfeitas por saberem que não são desconhecidas uma da outra.
Cosimo não sabia que mais dizer e, assim, retomou a leitura.
- Que está a ler?
- O Gil Brás, de Lesage.
- É bonito?
- É, sim, é bonito.
- Falta-lhe muito para acabar?
-Porquê? Bem, faltam-me cerca de umas vinte páginas.
-Porque, quando o acabasse de ler, queria perguntar-lhe se mo emprestava... - sorriu, ligeiramente escondido.
-É que, sabe, passo os dias escondido sem ter nada para fazer. Gostava de ler um livro de vez em quando. Uma vez assaltei uma carruagem. Trazia pouco que roubar, mas havia um livro e eu trouxe-o. Levei-o comigo, escondido debaixo da capa; teria preferido desistir do produto todo do roubo a perder aquele livro. À noite, acendi a lanterna e ia para ler... quando vejo que era em latim! Não percebia nem uma palavra... - Abanou a cabeça. - Como não sei latim...
- Bem, a verdade é que o latim é difícil - disse Cosimo, sentindo que, mau grado seu, estava a tomar por ares de protector. - Este aqui é em francês...
- Francês, toscano, provençal, castelhano, compreendo tudo - disse João dos Bosques. - Até sei um pouco de catalão: Bon dia! Bona nit! Està la mar molt alborotada.
Em pouco mais mais de meia hora Cosimo acabou de ler o livro e emprestou-o a João dos Bosques.
Assim principiaram as relações entre meu irmão e o salteador. Mal João dos Bosques acabava de ler um livro, corria a restituí-lo a Cosimo, pedia-lhe outro emprestado, voltava imediatamente a encafuar-se no seu esconderijo secreto e mergulhava profundamente na leitura. (...)

A quem era João dos Bosques útil agora? Se passava a vida escondido, de lágrimas nos olhos, já não dava mais golpes, não fazia roubos de espécie alguma, no bosque mais ninguém podia fazer o seu negócio, os beleguins todos os dias faziam batidas e mal achassem que um desgraçado tinha ar suspeito era o suficiente para o levarem para a cadeia. Se se acrescentar a isto a tentação que representava o prémio que se oferecia pela cabeça de João dos Bosques, imediatamente se torna claro que os dias deste último estavam praticamente contados. (...)


As associações tornam o homem mais forte e põe em relevo nele os melhores dotes do indivíduo singular e conferem, simultaneamente, aquela espécie de alegria que, permanecendo uma pessoa só, raras vezes sente constatar como é elevado o número de pessoas honestas, corajosas e capazes e pelas quais vale a pena quererem-se coisas boas; ao passo que, vivendo-se isolado, se chega facilmente à conclusão contrária, descobrindo-se quase sempre a outra face das pessoas, essa face perante a qual é sempre necessário ter sempre a mão pousada na espada. (...)


Todo aquele que quiser olhar a terra convenientemente deve manter-se à distância necessária para o fazer (...)

Conheceram-se. Ele conheceu-a e conheceu-se a si próprio, porque na verdade nunca se tinha conhecido. E ela conheceu-o e conheceu-se a si própria, porque, muito embora sempre se tivesse conhecido, nunca pudera reconhecer-se daquela maneira. (...)

O amor era para ele um exercício heróico: o prazer misturava-se frequentemente com provas do seu ardor, de generosidade, de dedicação e de tensão de todas as faculdades de sua alma. O mundo deles eram as árvores mais intrincadas, de ramos mais torcidos e difíceis. (...)

- Porque me fazes sofrer assim?
- Porque te amo.
Desta feita, era ele quem se irritava:
- Não, não me amas, não pode ser verdade! Quem ama deseja a felicidade e repele a dor.
- Quem ama deseja apenas o amor, ainda que para tal seja necessário experimentar a dor.
- Então fazes-me sofrer de propósito.
- Sim, para ter a certeza que me amas.
A filosofia do barão recusava-se porém a ir mais longe.
- A dor é um estado de alma negativo.
- O amor é tudo.
- A dor deve ser sempre combatida.
- Ao amor nada se recusa.
- Certas coisas nunca admitirei.
- Tens de as admitir, inevitavelmente, uma vez que me amas e sofres. (...)

O Barão Trepador, de Italo Calvino

sábado, fevereiro 17

Quintos- a terra prometida



Fiz-me à estrada e fugi do explosivo bulício citadino.

Pelo caminho perdi-me na imensidão dos campos verdejantes resplandecidos pelas chuvas de inverno que tornavam os dias campânulas demasiado cinzentas. Compreendi que a cinza dos dias que antecederam esta minha viagem, eram afinal uma razão divina e bela, eram chuvas dignas de fazer dos campos uma tela imensa, carregada de sinais que ampliavam o meu ser.

O linha do horizonte era uma charneira simbiótica: o azul do céu, espaçado por nuvens gigantes bem lá no alto e ao longe, as nuances de campos divinos obrados pelo homem, davam uma ambiência de sonho, de sonho tornado vivido.

A estrada, era de terra batida, parecia que nunca mais acabava, os campos, eram imensos: multiplicados planos de sonhador; os pássaros, pousavam na terra humedecida, como se nada houvesse demais, eram as asas da liberdade vivendo o verdadeiro significado
da vida.

O destino tinha-se feito sem noção do tempo corrido. Fora viagem carregada de cantos maravilhosos, os cantos da alegria do interior; ali, no caminho das árvores do silêncio,
encontrei a estrada para a verdadeira vida, a estrada verde-pura, que não a do silêncio ensurdecedor.


Cheguei entretanto a Quintos.

NI, OH, ATCHA!

À mínima ordem, as ovelhas voltavam para o seu sítio, virando assim as costas para o rumo de estrada que se dirigiam.

Se. Manel, do alto dos seus cinquenta e dois anos, era um homem bonito, pele torrada pelo sol alentejano, barba farta e comprida como a de um monge solitário; uma pronúncia típica de alentejano puro como a própria terra de cultivo. Desde miúdo que vivia rodeado de ovelhas - no momento em que o visitei eram perto de quinhentas, pelo meio havia uma negra - patos mudos, galinhas, gansos e outros animais que tais. A sua vida foi, é, e sempre será, o culto à terra sagrada, nunca quis mais do que isso e apenas um sítio para dormir, um fogão e pouco mais, nada de electricidade, nem televisão; por vezes, uma vinda ao centro citadino da sua região, para satisfazer as suas libidinosas necessidades.

A sua vida resumiu-se desde sempre à contemplação dos campos dourados onde vivia.

Levanta-se cedo e cedo se deitava.

Foi uma visita muito proveitosa e encantadora, nunca até então tinha estado com um personagem tão real e senhor das suas reais necessidades. Olhava para os animais com uma candura enternecedora. Nesse olhar, revelou-se a constatação pessoal de que o Homem, ainda é capaz de ser puro, como a própria Natureza que o concebeu.

Por vezes sonho, em ser assim.

terça-feira, fevereiro 13

UM POEMA DE AMOR




Todas as mulheres
Todos os beijos delas as
Formas variadas como amam e
Falam e carecem
As suas orelhas todas elas têm
Orelhas e
Gargantas e vestidos
E sapatos e
Automóveis e ex-
Maridos.
Principalmente
As mulheres são muito
Quentes elas lembram-me a
Torrada amanteigada com manteiga
Derretida
Nela.
Há uma aparência
No olho: elas foram levadas, foram
Enganadas. Não sei mesmo o que
Fazer por
Elas.
Sou
Um bom cozinheiro, um bom
Ouvinte
Mas nunca aprendi a
Dançar - eu estava ocupado
Com coisas maiores.
Mas gostei das camas variadas
Lá delas
Fumar um cigarro
A olhar pro tecto. Não fui nocivo nem
Desonesto. Apenas um
aprendiz.
Sei que todas têm pés e cruzam
Descalças pelo soalho
Enquanto observo os seus tímidos cús na
Penumbra. Sei que gostam de mim algumas até
Me amam
Mas eu amo só umas
Poucas.
Algumas dão-me laranjas e pílulas vitaminicas;
Outras falam mansamente da
Infância e dos pais e das
Paisagens; algumas são quase
Malucas mas nenhumas delas é
Desprovida de sentido; algumas amam
Bem, outras nem
tanto; as melhores no sexo nem sempre
São as melhores
Noutras coisas; todas têm limites como eu tenho
Limites que aprendemos
Rapidamente.
Todas as mulheres todas as
Mulheres todos os
Quartos de dormir
Os tapetes as
Fotos as
Cortinas, tudo mais ou menos
Como numa igreja isolada
Raramente se ouve
Uma risada.
Essas orelhas esses
Braços esses
Cotovelos esses olhos
A olhar, o afecto e a
Carência
Sustentaram-me,
Sustentaram-me.
CHARLES BUKOWSKI

CONFISSÃO




A esperar pela morte
Como um gato
Que vai pular
Na cama

Sinto muita pena da
Minha mulher

Ela vai ver este
Corpo
Rijo e
Branco

Vai sacudi-lo e
Talvez
Sacudi-lo de novo:

“Henry!”

E o Henry não vai
Responder.

Não é minha morte que me
Preocupa, é a minha mulher
Deixada sozinha com este monte
De coisa
Nenhuma.

No entanto,
Eu quero que ela
Saiba
Que dormir
Todas essas noites
A seu lado

E mesmo as
Discussões mais banais
Eram coisas
Realmente esplêndidas

E as palavras
Difíceis
Que sempre tive medo de
Dizer
Podem agora
Ser ditas:

Eu amo-te.

CHARLES BUKOWSKI

DINOSAURIA, WE



Born like this
Into this
As the chalk faces smile
As Mrs. Death laughs
As the elevators break
As political landscapes dissolve
As the supermarket bag boy holds a college degree
As the oily fish spit out their oily prey
As the sun is masked
We are
Born like this
Into this
Into these carefully mad wars
Into the sight of broken factory windows of emptiness
Into bars where people no longer speak to each other
Into fist fights that end as shootings and knifings
Born into this
Into hospitals which are so expensive that it's cheaper to die
Into lawyers who charge so much it's cheaper to plead guilty
Into a country where the jails are full and the madhouses closed
Into a place where the masses elevate fools into rich heroes
Born into this
Walking and living through this
Dying because of this
Muted because of this
Castrated
Debauched
Disinherited
Because of this
Fooled by this
Used by this
Pissed on by this
Made crazy and sick by this
Made violent
Made inhuman
By this
The heart is blackened
The fingers reach for the throat
The gun
The knife
The bomb
The fingers reach toward an unresponsive god
The fingers reach for the bottle
The pill
The powder
We are born into this sorrowful deadliness
We are born into a government 60 years in debt
That soon will be unable to even pay the interest on that debt
And the banks will burn
Money will be useless
There will be open and unpunished murder in the streets
It will be guns and roving mobs
Land will be useless
Food will become a diminishing return
Nuclear power will be taken over by the many
Explosions will continually shake the earth
Radiated robot men will stalk each other
The rich and the chosen will watch from space platforms
Dante's Inferno will be made to look like a children's playground
The sun will not be seen and it will always be night
Trees will die
All vegetation will die
Radiated men will eat the flesh of radiated men
The sea will be poisoned
The lakes and rivers will vanish
Rain will be the new gold
The rotting bodies of men and animals will stink in the dark wind
The last few survivors will be overtaken by new and hideous diseases
And the space platforms will be destroyed by attrition
The petering out of supplies
The natural effect of general decay
And there will be the most beautiful silence never heard
Born out of that.
The sun still hidden there
Awaiting the next chapter.

Charles Bukowski

O GRANDE BORRACHOLAS



uma noite chegou à minha porta, pele e ossos molhado batido
assustado,
era um gato branco estrábico rabão.
deixei-o entrar alimentei-o foi mais um em casa
deu-me a sua carinhosa confiança,
até que um dia um fulano,
estacionado na minha garagem,
passou com o automóvel por cima do gato estrábico rabão.
levei imediatamente o que dele restava a um veterinário que disse:
"não há muito a fazer... dê-lhe estes comprimidos... tem a espinha
partida, mas já antes foi partida e de algum modo
conseguiu sarar, se sobreviver não voltará a andar, olhe
estas radiografias, deram-lhe um tiro,
veja estes pontos escuros,
são chumbadas enquistadas... além disso já teve cauda
e alguém lha cortou...»
levei o gato para casa, era um verão quente um
dos mais quentes em décadas, pus o gato no chão do quarto de banho,
dei-lhe água, os comprimidos, não queria comer nem beber,
eu mergulhava o dedo em água, humedecia-lhe a boca
e falava com ele, nesse verão não saí, passei muitos dias
no quarto de banho falando com o gato, acariciando-o suavemente,
ele olhava-me com aqueles olhos que se cruzavam
e os dias passavam.
uma tarde fez o seu primeiro movimento
arrastando-se com as patas dianteiras
(as traseiras não queriam mover-se)chegou até ao canto onde lhe tinha preparado a cama
arrastou-se mais um pouco e deixou-se cair nela.
foi como o som de um clarim pressagiando a vitória possível,
ensurdecendo o quarto de banho, espalhando-se pela cidade.
então contei ao gato que também eu tinha passado um mau bocado, não tão mau como o dele,
mas bastante mau...
uma manhã ergueu-se, ficou imóvel sobre as patas e logo caiu de costas, olhava-me mansamente.
"és capaz" disse-lhe.
ele insistiu, levantava-se e tornava a cair, uma vez e outra,
finalmente
deu uns poucos passos, era a viva imagem de um bêbado as patas recusavam-se a obedecer-lhe, caiu outra vez, descansou
e de novo se ergueu.
conhecem o resto da história: está melhor que nunca.
estrábico, quase sem dentes, mas recuperou a graça e aquele olhar
pícaro nunca o abandonou.
algumas vezes fazem-me entrevistas, querem saber
da minha vida, da minha literatura,
embriago-me, levanto nos braços o meu gato
estrábico, ferido com bala, atropelado duas vezes, rabão
e digo: "olhem, olhem isto!!!"eles não entendem nada, insisto, nada de nada, perguntam
algo como: "reconhece influências de Celine?""não", ergo o meu gato, "por causa do que acontece, coisas
como esta, como esta!!!"
sacudo o meu gato, levo-o
para a luz enevoada de fumo e álcool, está sereno, ele sabe...e nesse momento a entrevista termina.
às vezes sinto-me orgulhoso quando vejo as fotografias,
lá estou eu, lá está o meu gato, fomos
fotografados juntos,
também ele sabe que são ninharias, mas de algum modo ajudam-nos.

Charles Bukowski

segunda-feira, fevereiro 5

A ABOMINÁVEL MULHER DAS NEVES

Devido a visões repetitivas do quotidiano, apercebi-me um dia destes de uma discriminação gigante no que toca ao fantástico mundo das animalidades.

Sendo assim, é um orgulho para mim referenciar tal constatação.

Desde puto que sei que os leões tiveram sempre pela frente as leoas, os cães as cadelas, os gatos as gatas, os macacos as macacas, por aí fora.

Desde sempre tive a noção de que por trás dum grande macho está uma grande fêmea ou vice-versa.

Mas um dia destes, enquanto caminhava pela rua com um olhar oblíquo-descendente, constatei que uma fêmea, mais da história da animalidade fantástica, do que do mundo selvagem comum, foi relegada para a inexistência, quando a sua própria existência escondida é tão óbvia quanto o facto do Abominável Homem das Neves ser uma criatura das montanhas, farto em pêlo e senhor de grunhidos selváticos.

Falo-vos pois, da fantástica, encantadora, da fabulosa ABOMINÁVEL MULHER DAS NEVES!

Depois de tal observação, foi notável e até surpreendente verificar que a ABOMINÁVEL MULHER DAS NEVES encontra-se já enraizada na nossa cultura dita ocidental.

Quem lê este isto deve estar a questionar:

«Mas afinal, de quê que fala este homem abominável que não das neves?»

Esta pergunta faria sentido não fosse eu explicar as razões destas minhas dilacções.

O que afirmo, o facto de vivermos cada vez mais rodeados de Abomináveis Mulheres das Neves, é apenas a constatação de quem olha para baixo.

Pergunto-vos agora:

Quantos de voçês nunca se depararam no autocarro, no metro, na rua, no café, no salão de bilhares, na baixa, no comboio, com aquelas criaturas patudas com imensos e fartos tufos de pêlo cravados à pele das partes inferiores das pernas?

Certamente que já sabem do que estou a falar!

Sim, essas mesmas!

O facto de existirem nas mais diversas tonalidades e formas, contrariamente ao pobre desgraçado macho grotesco de pêlo branco sujo que vive numa gruta húmida num monte longínquo e soturno, é uma consequência da adaptação biológica e veloz à vida citadina.

Estas fêmeas, que se desenvolvem fora do habitat natural há já bastante tempo, muito antes do tempo em que os relógios passaram a ser digitais, são agora, seres civilizados com hábitos prosaicos e perfeitamente adaptados à vida do dia-a-dia.