terça-feira, julho 24

COM UM APERTO DE MÃO OU DOIS BEIJOS NA CARA?

"Olá, o meu nome é Andreia Pedro, sou hermafrodita."

segunda-feira, julho 23

A ESCRITA É COMO UM LEVIANO NOVELO

O gosto pela escrita é um acto que me consome. Por vezes falta-me a vontade. Os dias por vezes são demasiado completos, completos ao ponto de nos roubar tudo aquilo que temos como principal interesse a desejar. Durante um dia certas bases são-nos necessárias, e muitas vezes o tempo já é mínimo para esses fragmentos essenciais. Temos como principal e bruta causa o trabalho, é óbvio que mesmo sendo essa área inevitável uma base fundamental para a sobrevivência, não é propriamente desse tipo de bases necessárias que me estou referir. O trabalho é mais como um mal necessário e despoletador. Trabalhando-se, uma série de consequências desenrolam-se como um pesado novelo que desce em vão de escadas. O que pesa é o trabalho, o fio que vai ficando para trás, é tudo o que dele se desenrola. Podemos começar pela segmentada linha de cansaço. Psicológica. Física. Vivencial. A parte psicológica é uma das primeiras a desenrolar-se nos degraus que pretendemos subir, mas no entanto, vai em sentido contrário e descendente. A física dá-lhe seguimento. A vivencial é a continuidade da linha que permanece ligada ao novelo.
Hoje, domingo, o novelo vai caindo pelas escadas abaixo. Amanhã é segunda, uma segunda chuvosa de verão estranho.
Decidi largar o novelo para me libertar da sua gravidade, e assim poder dar cumprimento ao outro novelo implícito, o novelo que por vezes se deixa engolir por aquele que caiu pelas escadas abaixo. Pode parecer estranho imaginar um novelo a engolir outro pela sua boca que não existe, mas a verdade diz-me notoriamente que isso acontece. Digo isto por constatação. Nos últimos dias os dois novelos tem-se emaranhado um no outro, e só hoje, depois de muito esforço, é que consegui soltar o meu fio a que posso chamar simbolicamente de escrita do outro a que posso chamar dramaticamente de trabalho, evitando assim, a queda dos dois pelas escadas abaixo que servem de base para o local onde me encontro. Só depois de algum esforço aprazível consegui fazer com que o meu desejável novelo subisse de novo as escadas até mim bem enrolado como uma esfera de fios, para assim, ver, sem olhar directamente, que o outro novelo, o pesado, já se encontra bem lá no fundo à beira da porta de saída do prédio. A ponta por cá continua.
Quanto à do meu belo novelo, está algures por aí emaranhada pela cidade. Não a cidade dos prédios em construção, mas sim a cidade em construção, a minha cidade. A cidade labiríntica que só eu compreendo, que se vai desenrolando pela ponta de fio que é a do meu pensamento e que bem junto a mim se encontra, desenrolada do novelo que guardo como compreensão. E a escrita é isso mesmo. Um encontro que se guarda maleável para sempre. Um fio enrolado de forma a dar forma a uma bola que nunca é a mesma porque o seu tamanho cresce e mingua mediante o ritmo complexo dos dias. Hoje contrariei e desemaranhei tudo o que previa. Mesmo esvaziado pela saturação poeirenta dos últimos dias que me impedia de escrever devido a necessidades como a contemplação e a descontracção psicológica, soltei-me do fio que me prendia à letargia e que me ia impedindo de falar pelas palavras escritas. Rodeei-me de componentes que me saciam a sede que tenho sempre. Letras. Palavras. Frases. Metáforas. Hipérboles. Linhas. Virgulas. Símbolos. Pontos. Parágrafos. Um texto. Voltei ao meu mundo em construção, à minha cidade natal que moldo a meu gosto com as minhas próprias duas mãos. Sem prédios. Nem obrigações. Apenas a liberdade consciente de ser e procurar evidenciar o que se escondeu em mim nos últimos dias, de cansaço, que me impediam de desenrolar o novelo que se escreve por si.

segunda-feira, julho 16

O SOFÁ

Absorvo-me num sofá
Em tudo o que ele me pode mostrar
Explosões cerebrais
Recordações duma imaginativa concreta
O seu tecido, a sua cor as suas pessoas
Mãos que lhe deram forma
Capazes de me fazer recordar sonhando?
Quedo-me na sua questionação para lá dum olhar
Quanto tempo faz? Foi dado envelhecido, gasto pelo tempo
Onde esteve, por onde andou? O toque que lhe foi sentido
Está velho, tem história um conto magicado por mim
Um amor que ali começou a afagar, apaixonou o homem
Que aqui escreve escreveu
Alguém o formalizou antecedentemente
Talvez uma mulher de cabelos encaracolados
Pelas mesmas mãos delicadas que penteavam meditativo espelho
Embaciado pelo banho do repouso de fim de tarde

Pernas aplainadas pela condutiva ancestralidade
Utensílios na sombra duma oficina fechada por hoje
Martelos, pregos, tecidos e todos os demais amigos
Unidos para fazer recordar uma noite
A noite do sofá que me olha demonstrando-se
Misterioso o suficiente para me fazer voar para lá
Para o tempo passado pelo presente que já foi…

Deito-me nele, acabo as linhas que lhe dão forma
Amparada no cansaço de acordado
Conforto-me nas palavras que me trouxe
Enquanto espero sonhos de olhar agora fechado

domingo, julho 15

COMO SEMPRE!

Hoje foi um daqueles dias em que caímos numa crise existencialista da mais bela e concludente que pode haver. Logo de manhã como sempre levantei-me para ir trabalhar nas obras como sempre de há uns tempos para cá. Ganhar dinheiro! É preciso ganhar dinheiro da melhor maneira possível! Levantei-me atrasado como sempre também. A correr vesti-me, preparei o saco, esqueci-me de algo que já não me recordo, como sempre também, tive que voltar a subir as escadas de volta ao meu quarto para vir buscar a minha própria cabeça e voltá-la a pôr no sítio. Estava um rico dia de primavera invernosa, dúbia como um raio dos que se fizeram ver nos céus da tarde. Ora sente ora não sente. Um passo apressado ao ritmo demarcado pela escrita que me obriga a dactilografar dum modo real e encantador. Por acaso ainda não chovia mas no chão já não se via o pó e o áspero. Pedaços de espelhos em estados líquidos a dar forma massiva sarapintada nas concavidades do passeio, aqui e ali, de todos os tamanhos formas e reformas. Um todo que se deixa transpirar e aspira o seu próprio suor! Ora no céu! No ar! No chão! Uma força descontrolada pelo ritmo sistemático do ordenamento do tempo, o nosso tempo e o tempo da contemplação. O único tempo que se faz sentir. Único como circunstância complexa e fundamental. O que nos sorve e reabsorve que se pode chamar de relógio intemporal. O fim! O fim já foi, mas de manhã de passo apressado como um autómato digno de tal adjectivação ainda consegui ver o autocarro que devia apanhar como sempre. Devia! E como tal devo dizer que não era só eu o autómato, afinal parece que é algo contagioso. Vi pássaros esvoaçantes. Gaivotas e outros seres vivos difíceis de distinguir. O sono acelerado pelo pé pesado não permitia ter grande discernimento óptico e tendo em conta que os olhos não se queriam muito abertos para a “vida” era sem dúvida nenhuma uma bela duma compreensiva contemplação. A música, apenas nos ouvidos, dava a banda sonora como sempre do dramatismo teatral que estará em palco, chega-se a ver as mesmas peças todos os dias, tipo actos com pequenas diferenças interpretativas, uma peça por dia! Até as nuvens andavam às peças, o vento via-se nas formas magnéticas ao ritmo da minha manhã. Tudo e todos adormecidos numa peça, absorvidos pela tragédia matinal que tem uma imensidade de espectadores acordados: não eu, como é óbvio, nem todos os outros bonecos exteriores, apenas o conteúdo, as suas esponjosas formas de tecido acetinado pela chuva que entretanto começou a cair. Foi como um sossego sonolento, as gotas a caírem uma por uma do seu todo na naturalidade do Inverno que foi atropelado por um camião e desfeito em pedaços frescos e resfriados que se começaram a sentir na força do vento desfragmentado pelas formas, as tais que nos podem levar para longe! «Um belo sonho! Vou com o vento!... Sou um pássaro como aquele que vai ali em cima, o tal que não consigo identificar!...» E sendo assim a voar vou em direcção ao rumo do bafo ventoso que dá direito a uma viajem numa divisão movimentada em que diversos bancos figuram à volta do espaço ambulante carregado de carneiros mal mortos com um bafo quente e doentio carregado de alho com cebola podres dum monte qualquer agreste. É o momento Zen! Com publicidades a apelar a uma espiritualidade apaziguadora e sonolenta ao ritmo acelerado das circunferências de borracha alinhadas pelo eixo constrangedor primaveril. Um barulho evocativo de baixa frequência numa versão maquinal dum rumorejar religioso imparável. Os olhos pesam. As cabeças tombam. As crianças irritam, nunca souberam respeitar os princípios fundamentais do seu tempo, sempre com uma indiferença superior, uma inocência natural da mais pura entre as almas de todos os adormecidos e conformados. E lá vou eu, a ver adormecido no momento imagens coloridas e monótonas! As mesmas pessoas os mesmos gestos, uma percepção tardia e reflexiva do íntimo da noite que respira em mim. Uma buzina na cabine deambulatória fez-me carregar um botãozinho anteriormente. O inicio duma manhã de trabalho sob a luz pálida dum sol escondido pela força do vento. Um pé no passeio uma posição, um olhar para o céu a ver as nuvens a correrem a um ritmo divinal. Umas cuecas estreitas de fora do rabo sexy na mesa ao lado, como sempre! Um café acompanhado ao som das páginas do jornal do costume. Uma ida e volta determinada e custosa! A contagem decrescente ao som do movimento perpétuo no passeio pesado pelas solas. Está lá o porteiro. Tiro a senha horária que não vejo nem existe substancialmente, guardo-a no bolso do casaco que me fica a matar sem tão pouco lhe tocar.
Já na carrinha a conversa rola de passe em passe, pequenos remates defesas carrinhos lançamentos do meio para a esquerda da carrinha branca e perigosa nas mãos dum distraído. Sempre frenético mesmo quando calado o condutor mantém o ritmo acelerado da carroça carregada de utensílios e tubos contemporâneos. Mete o rádio mais baixo, fala do que lhe apetece, futebol e outros interesses televisivos a incidirem para um burburinho religioso que absorve muitos crentes. Conversas sobre temas que só preocupam quem anda a tentar fugir para o outro lado do espelho da criminalidade. Aí, uma revolta mais séria dá corpo pesado à voz do homem que vai a subir as escadas para o abismo, rumo à exploração maquiavélica da vida, cada passo uma abolição das barreiras que impedem a corrida para o ouro, a subir empurrado por homens felizes como eu que pelo menos e sarcasticamente percebem quem são, vê-lo a rejubilar com saídas e entradas capaz de bater o mais sério do homem, toques subtis ao ritmo do sentimento de superioridade. O trânsito condensa e a conversa vai dando uma de filosófica, filosofia barata, dum lado ao outro, desde o condutor tresloucado e brusco distraído nas curvas que não vê enquanto fala, que nem percebe tão pouco que se está a gozar com ele tão absorvido na sua demência cavalgante. À minha direita no lugar do morto está um homem que dá um empurrão com mais força, calado. De repente uma pausa para o silêncio adocicado pelo som que debita do rádio e faz chorar lágrimas de emoção! E noutras circunstâncias, de lembrança de aspirador de dourados simbólicos, a palavra trabalho impera sobre o fundo do assunto que se explana do Interlocutor, aí a conversa resvala para um campo que não me interessa nem falo, limito-me a chorar lágrimas secas, a ouvir as informações do trânsito da cidade explosiva ou até conversas gravadas pelo directo memorável duma entidade que se encontra a gravar o que diz. O morto ressuscita ganha vida marionética pactua a sangue que escorre por distracção das mãos, responde militarmente ao superior hierárquico duma guerra injusta que se fez sentir por altura dum passado de quem manda. «Sim senhor!» diz o morto por entre dentes sem tão pouco perceber o seu grunhido de baixa frequência. Na rádio dizem entretanto «Tá no ir, não há que perder tempo, hoje chuva para o dia todo mesmo que não chova!» e eu espreguiço-me pelo movimento descendente da saída para o chão molhado por um orvalho matinal frondoso.
A sinfonia de metais da quinta feira de alegria já chegou, temos que pegar nos condicionados instrumentos tirá-los da caixa e juntarmo-nos ao grupo extenso de músicos que dá ritmo estonteante e embalado pelas mãos do inconformismo conformado, que com muitos anos de treino e genética recente vão prologando e compondo a melodia dos artistas presentes. Entre todos de tudo um pouco.
As paredes ainda estão cor de laranja, uma cor muito em voga em paredes que não se hão-de ver naquela cor, pequenas quadriculas acinzentadas ostentam ordenadamente tijolos que falam quando não se percebe quem. Os fios emaranham-se no chão, os caminhos são muitos e a música berra energeticamente duma aparelhagem sonora a fazer dueto com o som áspero dos movimentos da nossa orquestra dramática em construção, quanto mais se tocam os diversos instrumentos em mais melodioso se materializa o ensaio, o tempo vai passando e a experiência enriquece o reportório de notas que se fazem expandir pelo o ar poeirento, o martelo acústico e o pneumático são os sons mais graves que impõem o ritmo urbano entre todos os demais instrumentistas. O som intercalado latejante é rodeado concentricamente ao ritmo dos timbres dos diversos intervenientes. (...)

JARDIM DE RAÍZ




















"Jardim das delícias terrenas" Hieronymus Bosch, 1504


Silenciaste-te como resposta às minhas palavras. As minhas flores, em forma escrita perderam o cheiro doce da tinta, concêntricas letras sem sentido ordenado da vontade que me explana. Não pousaste sobre as suas minhas pétalas, rumaste para longe para um longe que não consigo decifrar. Senti-me só no silêncio das minhas palavras que flores não foram aquando do eco da tua melodia. Perdido, apenas perdido no eco que é o meu e não o desejado na primavera do meu ser que se quer expandir pela intemporalidade enternecedora. Repeti-me na ânsia de te ouvir, tentando com o meu pólen voar até ao teu nariz vazio pelo cheiro da minha constatação. Sorri para mim como se ao espelho me observasse como quem espera o reflexo daquilo que escreveu. Um sorriso doloroso rasgou-me a inferioridade da cara espelhada.
Senti-me bem na procura de ver a forma que é tua na cabeça sonhadora que vive o meu corpo. Um bem-estar doloroso forçado pela memória invadiu-me as entranhas, eras tu em mim, pávida como sempre, sobre este olhar introspectivo que me tolhe explanando-se. Todo um jardim na caixa em que me tornei, grandiosa o suficiente para me fazeres crer que a caixa que me molda é insuficiente para te conter.

Rejubilei num esvoaçar do que disse
Pousaste em mim tardiamente
Era já eu um ser disperso caído aos pés dum vazio que me varreu
Já não queria palavras apenas toques um abraço um beijo um respirar
Capaz de desenraizar a raiz que me estagnou.

segunda-feira, julho 9

A RESPEITO DO CONCEITO DE RESPONSABILIDADE

No autocarro, cânticos embriagados foram estalando pelo caminho, e aos poucos, os vidros esfriados pela noite. Um bando de rapazes e tenras raparigas tinham entrado na paragem anterior munidos de cervejas e instrumentos vocais capazes de agoniar o mais paciente dos surdos. Encostado no meu canto fui delirando alegremente com tal imagem sonora. Ver as garrafas de cerveja e sentir um gosto seco na boca fizeram de mim um ser desesperado. Os cânticos eram verdadeiramente agoniantes mas foram suficientemente bons para me fazerem rir à parva e desejar fugir do autocarro rapidamente. Questionei a possibilidade de partir o vidro e saltar borda fora…
Chegado ao destino o silêncio falou mais alto. Estava uma noite agradável, as ruas estavam apinhadas de caminhantes a afunilar para a entrada do enorme barril plantado a duzentos metros do mar rumorejante.
Começou a odisseia. No dia a seguir iria trabalhar bem cedo, sem saber bem porquê, tal responsabilidade não me entrou na cabeça, fugiu para longe da minha percepção. A preocupação era agora outra. Álcool. Queria álcool e devaneio selvático. Queria entorpecer o cérebro e dar asas ao espaço sideral, o espaço do nada que nos serve de base como homens que somos. Comecei por uma cerveja de meio litro, daquelas cervejas manhosas que surgem como cogumelos das mais diversas formas e sabores com o intuito de chamar à atenção dos mais cépticos entre os bêbados. Na falta da tradicional, uma com um sabor mais forte e numa quantidade boa era o suficiente para arrefecer e suavizar a minha boca seca. Foi aí que dei um passo para o tudo. Para a perdição total, solta de rédeas, transformei-me em cavalo selvagem num prado amplo e natural repleto de cactos espinhosos e sequiosos de gotas de soluções aquosas multicolores. Ainda hoje, sóbrio e fragmentariamente esquecido, sinto que a veracidade desta minha história carece de pormenores capazes de dar forma coerente ao sucedido. Mas isso não é importante, a coerência não é sequer para aqui chamada e talvez por causa disso tal lembrança seja vista e analisada como se dum sonho se tratasse. Embriagado pelo álcool bebido a jorros e pelo ambiente respirado, atulhei-me em considerações e posições soltas perante estados de espírito como o meu. Não me lembro do que disse, pouco me lembro do que fiz. Recordo-me de sair da tenda das borlas e dirigir-me à casa de banho. Pouco trôpego lá fiz o meu slaloon gigante até ao mictório, lá chegado, mijei ao lado, era um acto menos custoso e bem mais natural. Depois de me consolar com a fluidez a jorros, tentei voltar ao ponto de partida… Caminhei, olhei em volta, caminhei, caminhei, voltei a olhar à procura do farol que me iluminava a alma e nada. Dei quatro voltas ao recinto sem encontrar, sem me encontrar. Entretanto voltei ao sítio de primeira necessidade e como cão que se preza por lá mijei mais uma vez. Ao apertar a pertinhola e levantar a cabeça desisti de voltar a procurar a tenda da copofonia. Um som de fundo cativou-me, vinha duma tenda grande a poucos metros de mim. Encaminhei-me para lá ao som do jazz crescente. Quatro indivíduos munidos com as suas armas enchiam de chumbos a tenda. Tocavam bem. Embalaram-me. Meteram-me dentro duma embalagem almofadada que me fez ficar por ali uns largos minutos. O corpo contorcia-se ao som de contrabaixo, bateria, saxofone e trompete. Era capaz de ficar ali até acabar, mas de repente, e sem saber agora explicar muito bem porquê, veio-me à ideia que a tenda era ali, na direcção para a qual olhei. Encaminhei-me nessa direcção e dei por mim de novo na tenda onde se encontravam os meus comparsas de borga. Estavam igualmente alegres, entorpecidos por charros de haxixe e copos à valente. Voltei a encher o meu copo. Não sei se de cerveja se de whisky, o que seria não era importante. As palavras e as gargalhadas saíam demencial e estonteantemente, uns bafos de haxe uns goles de álcool uma elevação suprema. Já não me lembrava de tal estado entorpecido. Há já bastante tempo que não me dava ao trabalho de sair de casa para beber como um cano de esgoto num dia de avantajadas chuvas. Que noite! Que memorável recordação! Que acto divino este, beber até cair para o lado e perceber nos dias que precedem que por vezes a vida é um processo de esquilo que rói nozes sem saber bem porquê. No dia a seguir uma série de orgulhos e conclusões brilhantes invadiram-me o cérebro como lapas bem vindas. Para quê prender-me sempre às responsabilidades impostas pela sociedade, se elas só existem para me pesar o espírito? Porque razão haveria de me sentir culpado por ter bebido bem e no dia a seguir não ter ido trabalhar? Tudo isso só serve para nos tolher, para sermos cães que não nossos. Entretanto perdi o telemóvel, o passe de autocarro e o maço de tabaco. E de todas essas três coisas só uma coisa me preocupou, o passe, sem ele não poderia vir até casa… Dei por mim já fora do recinto da queima dos neurónios, e os meus estavam bem queimadinhos, era naquele preciso momento um homem-peixe, um homem só, sem se lembrar tampouco dos que ficaram para trás, perdido em mim mesmo. Falava com três gajos com um ar bastante refinado, bem vestidos, com um sotaque educado, não me recordo se fui eu que os interpelei, se foram eles que me falaram, não fazia a mínima ideia de como tinha ali chegado… Lembro-me que tinham um carro clássico, branco sem capota, que estava um sol matinal maravilhoso e reconfortante. A brisa do mar lambia-me a cara, tal carro era o ideal para ir para casa. Descapotável! Rapidamente estava dentro dele depois de perceber que iriam atravessar a ponte Arrábida. Supostamente iriam para Coimbra ou para Aveiro… Quando tal estava no bairro da Pasteleira. Já num portal dum prédio carregando o meu corpo ondulante tentava perceber o que ali fazíamos, em vão, de repente um deles dirige-me a palavra.
- Estás todo maluco! – Ao ouvir isto uma espécie de choque apoderou-se de mim e abanou-me.
- Sabem que mais? Ide-vos foder! – Virei costas e dirigi-me para a rua.
Estava todo perdido, mas mesmo assim pus as mãos aos bolsos para me certificar do que não tinha. Tinhas apenas uma moeda no bolso, insuficiente para apanhar o autocarro que ainda não sabia qual era nem para onde. Dirigi-me para o táxi que me tinha trazido gratuitamente para ver se não tinha deixado cair pelo banco de trás as minha coisas, confirmou-se, nada estava por lá. Apetecia-me um cigarro. No tabelier algo plastificado reluziu com a luz do sol. Já de maço de tabaco na mão acendi um cigarro e encaminhei-me pelas ruas da até então desconhecida Pasteleira. Pela rua e àquela hora, desconhecida na altura, já andavam umas quantas e frescas pessoas. Velhinhas com sacas. Cães esfaimados e vadios. Senhoras de meia-idade… Dirigi-me a uma e perguntei-lhe por transporte.
- A senhora por acaso não me sabe dizer qual e onde posso apanhar o autocarro para o porto? – Não estava assim tão mal afinal, ainda conseguia articular uma pergunta com pés e cabeça.
- Você foi para queima!... Sei sim senhor, venha comigo. – Acompanhei-a enquanto me falou com orgulho da sua filhinha que há bem pouco tempo tinha acabado um curso qualquer e já se encontrava a trabalhar. Indicou-me então a paragem e, confortado pelo sol, por lá esperei pelo autocarro. Depois de pensar no que haveria de dizer, as desculpas que serviriam de desculpa plausível, e de muitas outras e confusas suposições, chegou o autocarro, instintivamente optei por entrar sem dar cavaco ao motorista e sentar-me. Já no lugar, ao lado duma universitária orgulhosa pelo pólo que vestia e com um cheiro agradável a perfume, olhava furtivamente para o retrovisor do motorista à espera duma repreensão ou duma pergunta constrangedora. Nada disso aconteceu. Observei calmamente os transeuntes, tirei conclusões não absorvidas pela memória e de repente já estava na baixa da bela cidade do Porto. Centenas de pessoas por lá andavam. Um ritmo de dia de trabalho rolava pela calçada. Para cá para lá. A uma velocidade constante. Autocarros. Camionetas. Carros motas. A estação de São Bento a vomitar pessoas pela boca que são as suas portas.
O barulho maquinado pelo barulho citadino dava uma ambiência esquisita mas agradável à vista. Toda aquela vida rolava diante dos meus olhos descomprometidos. Olhos humedecidos pelo sono mas no entanto bem abertos. Estava então parado. Não me lembrei sequer de olhar para o relógio da estação. Entrei no fosso para o metro. Tinha uma moeda suficiente para o meio. Decidi entrar sem pagar. Sempre que andei de metro nunca vi um revisor de cartões. O metro chegou em minutos como uma cobra amarela cheia de vítimas no comprido estômago que é o seu corpo. Entrei de espírito leve sem medo. Ao atravessar a ponte D. Luís I maravilhei-me com as duas cintilantes e iluminadas margens, com o rio douro e a sua cor doentia e suja, rejubilei. Entrei na periférica deusa Gaia subi a avenida movimentada e saí na minha destinada estação: JOÃO DE DEUS. Já na rua, com os ouvidos avivados pelo movimento perpétuo, caminhei calmamente e em piloto automático para casa. Pelo meio parei numa pastelaria para gastar a minha última moeda num belo e doce bolo que justificava, neste caso sim, o gasto; seria capaz de comer mais uns quantos que figuravam na montra que ladeava o balcão, mas não tinha dinheiro suficiente… O meu ritmo era lento, ritmo de quem contempla e nada mais, sem obrigações impostas. Já nem me lembrava que tinha assinado um contrato de trabalho de seis meses no dia anterior. Atravessei o jardim de Soares dos Reis, apreciei o passarinhos, ouvi as suas melodias intrincadas, olhei para a estátua fria dum falecido e rapidamente dei por mim na cama depois de ter tentado perceber o que me tinha acontecido ao falar com um acompanhante da noite anterior. A tentativa de nada valeu. Decidi deitar-me sobre o assunto.
Nos dias seguintes o puzzle foi-se compondo. Depois de acordar com uma ressaca bastante agoniante, propus-me a arranjar uma desculpa credível afim de me justificar perante o homem que me contratou. Um homem estranho diga-se de passagem. Homem dos seus cinquenta e poucos anos. Sobrevivente da guerra colonial, filho duma guerra que o obrigou a sofrer. Pelo que me apercebi ao puxar conversa com ele na carrinha, nos dias anteriores, a caminho das diversas obras em que me vi obrigado a estar para ganhar dinheiro, era um personagem natural e consequencialmente desconfiado e capaz de mudar bruscamente de humor e tom de voz ao mínimo toque da sirene que só existe na cabeça dele. Tal retrato dele, na minha cabeça estonteada pelo álcool recesso do dia seguinte, era motivo para me assustar o suficiente e fazer-me concluir que trezentas das desculpas que engendrava seriam obviamente desmacaradas por aquele ser estranho e alienado. Consegui nesse mesmo dia perceber que não tinha apanhado uma daquelas pielas em que nos tornamos pesos aborrecidos e estupidificados pelas atitudes tomadas. Tal suposição assombrava-me já que me tinha deparado sozinho e perdido na manhã longe de todos aqueles conhecidos com quem partilhei a maior parte da noite. Mais sossegado, mas ainda mergulhado em planos justificativos capazes de me impedir de voltar à penúria de receber metade dum pobre e medíocre ordenado mínimo, tentava insistentemente encontrar uma mentira verosímil. Soube entretanto, e não no dia de folga pessoal, que me tentaram em vão arrastar para casa na esperança de que no dia seguinte me encontrasse no armazém frio e saturado de peças de alumínio e materiais afins. Nada disso aconteceu, e o meu estado era já tal nesse preciso momento de preocupação alheia que argumentei que ficaria com um personagem que em tempos rejeitou água a um grupo de amigos, em que eu me incluía. Essa rejeição é digna de ser escrita em jeito de parêntesis. Numa noite de verão em que estávamos na casa dessa pessoa somítica, embriagados por charros gordos típicos de quem corta sabões em vésperas de umas férias regadas a fumos acastanhados, a secura apoderou-se das bocas dos presentes, água foi pedida, à torneira se foi e de lá só saía um líquido amarelado, foi-nos dito pelo dono da casa que não haveria água já que a da torneira se encontrava naquele estado colorido, tal argumento foi motivo suficiente para se aceitar tal estado de desespero. Os charros continuaram a rolar a um ritmo alucinante, pela sala o nevoeiro condensava-se numa nuvem sólida e contagiante, até que alguém foi à cozinha verificar se a água tinha perdido a cor e reparou que algures pela despensa uns quantos garrafões de cinco litros cheios de água límpida repousavam num mistério escurecido… Recordar isto foi uma coisa muito estranha, estava mesmo perdido em etílico, recusei-me a vir para casa com pessoas que estimo bastante para ficar com uma pessoa capaz de rejeitar um bem essencial aos amigos só para reforçar a ideia de mitra que já se tinha sobre ele… A última pessoa conhecida com quem estive e que me recorde foi com ele. Pelo que me disse uns dias a seguir, passaram-me um copo de whisky para mão.
- Venho já!
Agora que penso sobre o assunto afincadamente, na esperança infrutífera de perceber melhor os acontecimentos, ocorre-me à ideia um pequeno facto questionável. Bombeado por um ataque de ebriedade talvez me tenha apercebido que me encontrava sozinho com o homem-mitra e, como consequência reaccional, tinha-me posto a trote trôpego e cambaleante para bem longe. Ainda hoje, muitas dias depois desse dia importante e memorável, não consigo perceber como é que tal persona foi de bom grado comprar os bilhetes para a festa do barril gigante. Em jeito de paranóia eu acho que ele sabia de tudo isto, que tudo o que aconteceu iria acontecer. Talvez tenha sido ele a roubar-me. Talvez tenha pensado para si: «vou levar aquele beberrão destravado e roubá-lo à boi quando estiver todo cego!» Sinceramente não acredito minimamente no que acabei de afirmar. Mas é-me mais difícil acreditar que pessoa que rejeita água aos amigos tenha ido para uma fila enorme para me comprar um bilhete com o seu próprio dinheiro.
Já à noite, ainda com o álcool a acidificar o meu esófago, consegui descortinar a tempo uma desculpa capaz de convencer o meu patrão tresloucado a acreditar numa mentira elaborada. A minha mãe teria ido para o hospital. O que não era mentira nenhuma. Ao constatar que não tinha às seis da madrugada posto ainda os pés no chão do meu quarto tentou-me ligar. Obviamente não o conseguiu. Consumida por um pavor materno ligou a umas quantas pessoas que nada souberam dizer sobre o meu paradeiro. E o pior é que nem mesmo o meu companheiro de trabalho que fora contactado à hora laboral soube dizer algo sobre o meu paradeiro. Apoderada pelo desespero começou a ligar desenfreadamente para os hospitais da cidade, em vão…
- Minha senhora, não entrou aqui nas urgências ninguém que corresponda ao nome do seu filho. Mas no entanto temos aqui um carreirinho deles sem identificação!... – aí a aflição fê-la sentir ainda mais os braços pesarosos do desespero.
Começou a correr os hospitais. Para todos os efeitos foi aos hospitais e de um modo mais singular «foi para o hospital» e como tal, dizer tal coisa ao meu patrão era uma boa hipótese com bases capazes de reforçar a confiança na minha afirmação de meio mentiroso. Aliado a esse argumento decidi-me por não pôr muito entulho na argumentação perante a identidade autoritária do patronato. Ser pragmático, esperar a reacção e a partir daí complementar as suas dúvidas com afirmações vagas mas plenas de coerência.







Acordei no primeiro dia de trabalho a seguir ao tiro com uma pressão no peito e uma consciência dorida de quem pode perder um emprego merdoso pelo qual teve que esperar oito meses para arranjar. Se fosse despedido, um rótulo de irresponsável seria colado na minha testa apenas visível aos olhos dos outros. Para mim, a minha atitude livre de tudo, não foi acto de irresponsável, muito pelo contrário. Fui porque quis. Bebi porque quis. Fiquei de bolsos vazios como consequência do que quis. Foi tudo obra da minha pessoa, e sendo assim, tais acontecimentos foram absolutamente da minha e singular responsabilidade. Não recusei o álcool, recusei-me a vir embora e fui senhor livre dos meus actos, larguei tudo, agarrei-me à minha responsabilidade e a nada mais.

quinta-feira, julho 5

PRIMAVERA LABORAL

Enquanto o trabalho se vai organizando no armazém da manhã, eu, de costas voltadas, bafejo um pesado cigarro, vou contemplando a audível e apaziguadora chuva que cai do céu imenso sobrelotado a cinza primaveril. Seria capaz de por ali ficar, imóvel, uma luxuriante eternidade...

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Por vezes as circunstâncias tornam-se estranhas, repletas de fantasmas que nos assolam por as concavidades da cidade serem propícias para o deleite previsível a que nunca nos habituamos. As suposições transformaram-se em certezas que não queremos aceitar verdadeiramente. Um momento chega, já previsto pelo vento que para lá nos empurrou, corta-nos, enfraquece-nos, um mundo transforma-se em metamorfose instantânea. Um cigarro acende-se depois de alguns outros fumados como quem inala gás com uma pressão constante que surpreendentemente nos abana. O perímetro condensa-se, um anel de beleza mental ganha forma no processo que o solidifica, como se tudo fosse tudo diferente. Os pássaros apercebem-nos pela sombra provocada pelo sol que se esvanece na noite que tudo tem, como uma nuance de pincel húmido de lágrimas que nos escorrem pela cara que solidifica em vincos que nos marcam e são desenhados de novo, com uma outra consistência. As linhas tornam-se voláteis, correspondentes a um som que nos embala na mais confusa das conclusões confirmadas pela carne que não se vê. Um ânimo estranho pega em nós, pesados como uma rocha, granito talvez, componentes são formados pela passagem do tempo até encontrar uma rigidez aparentemente insensível mas chorosa. O olhar fica preso, tudo tem outras cores, diferentes pinceladas na tela que se vai deixando ver até ao último toque. Diversas cores recalcadas e coloridas por cores mais fortes mais sombrias que provavelmente vão ser calcadas e recoloridas pela emoção que dá vida ao pincel. A experiência começa a dar azo a novas técnicas, palavras que nos são feias mas bastante úteis. Usa-se um instrumento bem afinado, com uma definição sonora exponencial que ecoa pela sala de espectáculos enquanto o público rejubila alheio. A música vai embalando as necessidades abanando-nos como se procurasse misturar tudo o que temos e concluímos. É bela a sonorização da sala, os altos os baixos e o graves e agudos, entrosa-se tudo numa parafernália deliciosa composta por uma imensidade sensorial que perfura o local onde me encontro. A vida corre no seu rumo inconstante na procura da proximidade duma perfeição natural que nos faça encontrar mais mais e mais. Uma perfeição que nos remete para as profundezas da alma, a eterna metáfora que nos magoa corporalmente.
As árvores agitam-se entre as paredes que formam o espaço sensitivo. Dão vida ao cenário pintado no caminho da mestria. O todo ganha espaço, liberdade para tentar aperfeiçoar o voo, pequenas penas vão crescendo até planarem serenamente sobre céu que se expande. Algures o tempo corre como água numa fonte cristalina e misteriosa, o caminho é longo e cada passo é menos custoso. Pequenos fios de água pelo chão quase imperceptíveis vão-nos saciando a sede até ao dia em que a fonte secar. O meio caminho vai no início e ainda tem muito mais que metade para nos dar.

COISAS A FAZER AINDA ESTE ANO

Sodomizar os sete anões!

Agarrar num punhado de pregos e pregá-los dum só arremesso!

Correr nú pela cidade com a minha bagagem carnal e pesada!

Limpar o cu depois de cagar, com folha de lixa da grossa!

Lamber o chão para sentir o seu localizado sabor!

Ouvir a mais detestável das músicas!

Matar umas quantas pessoas com uma caneta bic!

Coçar os ouvidos e tirar a mais consistente das ceras para assim construir quatro palácios imperiais!

Cagar ininterruptamente para um dia alpinistas escalarem o ponto mais alto do mundo!

Tirar macacos do nariz e deitá-los para uma jaula à sua medida!