sexta-feira, novembro 10

A ILHA DAS PANELAS




Nestes últimos dias tenho esvaziado a mala pesada de fotos que se encontrava a ganhar pó algures pela dispensa desta minha casa. Vou analisando uma a uma, procurando rever naqueles momentos imobilizados da folha de papel, memórias que se escondem nas concavidades do meu ser disperso em coisas do presente e do futuro. Algures nesse amontoado de recordações encontrei esta foto, a sua existência é anterior a mim mas no entanto possuo reminiscências contadas de como as coisas se faziam e sentiam nesse tempo.

Numa de muitas tardes como a que precederá esta manhã que finda, contaram-me histórias dum tempo que já lá vai, no tempo em que vagueava- ou talvez não- algures pelo corpo de alguém que era o meu não pai da altura. Eram tempos, diz quem me conta- a minha avó- de sacrifícios múltiplos e cheios de tudo aquilo que nos dá a força de viver, tempos em que parar para pensar era uma perda de tempo que de nada servia para pôr o comer na mesa. Nessa altura a vida não era como agora- como todos nós sabemos- não se tinham luxos como poder comer às horas que queremos e podemos, nem tão pouco darmo-nos a pequenos prazeres que não os básicos, que só por si e mediante as circunstâncias adversas e normais, já eram um verdadeiro luxo.
O nível de alfabetismo dos anos setenta era muito baixo, o conhecimento era restrito a um pequeno número de pessoas, e sendo assim a vida não era mais do que um emaranhado vivêncial de problemas que não eram mais do que motivos para nos "fazermos à vida" e pouco mais. Conta-me a minha saudosa avó que naquela altura e em anos anteriores o melhor meio de transporte- e por sinal mais económico- era o "fiat penantes", chegava a todo o lado e às horas pretendidas desde que as horas tivessem controladas; diz ela que a minha mãe, a partir dos seus tenros doze anos de pouca vida ia daqui à boavista todos os dias pelo tabuleiro de baixo da ponte D. Luís com um cabaz pesado de fruta na cabeça; andava por lá, voltava, chegava à hora do "tacho" comia e deitava-se. No dia a seguir era outro dia de trabalho. Tudo porque um dia tiveram que deixar de viver "sossegadamente" à custa de meu avô que assim queria que fosse, à boa moda machista do antigo regime... Um dia desapareceu, e a vida, diz a minha avó sem voz de arrependimento até que se tornou mais ampla e plena de sentido de sacrifício necessário à aprendizagem daquilo que é, singularmente; ela era e sempre foi analfabeta e sendo assim aprender fosse o que fosse era um prazer imenso. E porquê tudo isto, o que escrevo? Tudo isto para chegar ao local em que alguns destes ilustres personagens que figuram na foto que encima este texto moravam. Tudo isto para falar dum lugar mítico que me maravilha ouvir falar desde os meus tempos de infância, sítio esse que só o nome já é motivo para rejubilar de contentamento: a tão conhecida e badalada "ILHA DAS PANELAS". Não faço a mínima ideia porque tem esse ídilico nome, nunca foram feitas lá panelas, as que existiam também não deveriam ser muitas e se lá estavam era porque foram compradas ou oferecidas. Esta ilha citadina que não ladeada de água, era composta por oito casas de uma divisão cada; a casa de banho era comum, não possuia chuveiro nem lavatório, era apenas uma sanita e nada mais. Cada casa, uma família: a da Miquinhas Varredora e os seus não sei quantos mas bastantes filhos, a de minha avó e seus três filhos, a da se.Maria- dito assim como se lê- e mais os seus quantos filhotes em número bem comum aos que em média uma família típica portuguesa tinha, e mais cinco famílias de que não sei ou não me lembro do nome. Era um cenário, diz-me quem conta, bastante familiar e acolhedor. Nesses anos de sacríficio- coisa que infelizmente não tenho a verdadeira noção do que é- a irmandade entre miúdos era gigantesta. O dinheiro escasseava para os habitantes daquela ilha, talvez a situação geográfica e social fosse propícia a sua quase inexistência, mas no entanto, e às escondidas dos mais velhos, os miúdos como é o caso da minha mãe e de todos os outros, faziam das suas para alimentar a amizade inocente dos seus anos cada vez menos verdejantes que mais tarde viriam a dar lugar ao necessário trabalho; corroídos pela fome que espaçava a hora da refeição, tinham que arranjar maneira de comer pouca coisa que fosse para disfarçar essa fome momentânea; daí, a título de exemplo conto-vos esta história- à minha peculiar maneira- que me há-de maravilhar para o resto da vida.


As mães tinham saído cedo. Só à hora do jantar voltariam para nos ralhar ou bater por qualquer coisa que tivessemos feito e que era o pão nosso de cada dia. Era uma tarde solarenga e propícia para a brincadeira. Eu e todos eles brincavamos à vez com o cavalinho de madeira que em tempos de largueza financeira tinha sido oferecido a alguém. Depois de umas quantas voltas por campos imaginários- certamente cada um tinha o seu cavalo e o seu campo- já a hora se encaminhava para o sítio onde o sol se põe; um aperto na barriga deu o sinal daquilo a que o senso comum apelida- sim, apenas apelida- de fome constrangedora, que nos faz suar e desesperar por um naco mastígavel; uma ideia brilhante iluminou-me, porque razão até então nunca tinha pensado nisto? Sei que sofrerei consequências por este meu acto, talvez por isso nunca tenha pensado nisso... Mas deixa lá, se não é por isto é por outra coisa qualquer! Decidi-me! Vou subir a rampa e vou ao "Tagana"! Disse a meus irmãos e amigos para esperarem, subi a rampa do "Andante" com passo firme e vitorioso, entrei na lojinha onde a minha mãe tinha anotado o seu nome no livro gasto e desfolhado que repousava sobre o balcão, e disse:
- Dê-me um chouriço, dez pães e uma gasosa, ponha na conta da minha mãe que depois ela paga, muito obrigada.
Com o passo ainda mais determinado e com a mão esquerda estirada para baixo pelo peso da maravilhosa saca que trazia, cheguei à ilha, rápidamente o conteúdo do saco foi esventrado e depositou nos nossos estômagos uma satisfação suficiente para esquecermos a fome e voltarmos à brincadeira, só que desta vez decidimos inocentemente abandonar o cavalo e fomos correr para o vasto milheiral que se escondia por de trás da "Quinta de S. Salvador".
Dias depois chegou o dia de pagar a conta da loja, os tostões contadinhos estavam predestinados à mercearia. O dia do mês era sempre o mesmo, e eu, havia já bastantes dias que rezava para que aquele dia não chegasse nunca, até que um dia chegou... Nesse sábado desapareci da ilha com medo das represálias, mas no entanto, cedo ou tarde, tive que ir para casa, à minha espera estava minha mãe: aqueceu-me o corpo com todos os dedos que tinha nas mãos a multiplicar não sei por quantas vezes. Não lhe disse o porquê de ter feito aquilo. Isso guardei só para mim no meu enorme coração de criança. Apesar de tudo, não me arrependi, de maneira nenhuma.

Fiz desta recordação não vivida por mim, uma recordação pessoal vivida por palavras. Quis com isto chegar a uma conclusão que vendo bem foi o verdadeiro motivo para arquitecturar este texto que explodindo da foto começa a ganhar um espaço bem maior do que o que queria orquestrar. Sinto-me mais feliz depois disto e agora direi o que vos pretendia mostrar e dizer com este texto:

Nos tempos em que a necessidade era um monstro que à partida nos devia tolher, as pessoas sabiam ajudar-se mútuamente sem egoísmos intrínsecos; hoje, vive-se melhor, e apesar de ainda não ser para a maioria um "mar de rosas" as pessoas fazem do egoísmo um modo de vida.

A irmandade e prazer da entreajuda perdeu-se algures pelo tempo.

Mas vá lá, não é geral, ainda há bons corações.

Beijos e abraços!

segunda-feira, novembro 6

Interrogações.

Como é que pode um estado denominado soberano atropelar tudo e todos?

Como é que é possível que toda a gente fique a ver?

Como é que a democracia consegue personificar a liberdade?

Como é que a liberdade pode ser sinónimo de violência?

Como é que a violência pode ser a solução para um problema?

Como é que um problema pode realçar tanta ignorância?

Como é que a ignorância pode abrir tantos buracos?

Como é que os buracos podem ser tão escuros?

Como é que a escuridão nos pode salvar?

Como é que a salvação traz tanta desilusão?

Como é que a desilusão pode ser tão dramática?

Como é que um drama pode não ter fim?

Como é que o fim pode ser a solução?

Como é que a solução pode ganhar vida?

Como é que viver pode ser verdadeiramente real?

Como é que a realidade pode mudar?

Como é que a verdade pode vir a ser mudança?

Como é que vamos deixar de ser assim...?