segunda-feira, julho 23

A ESCRITA É COMO UM LEVIANO NOVELO

O gosto pela escrita é um acto que me consome. Por vezes falta-me a vontade. Os dias por vezes são demasiado completos, completos ao ponto de nos roubar tudo aquilo que temos como principal interesse a desejar. Durante um dia certas bases são-nos necessárias, e muitas vezes o tempo já é mínimo para esses fragmentos essenciais. Temos como principal e bruta causa o trabalho, é óbvio que mesmo sendo essa área inevitável uma base fundamental para a sobrevivência, não é propriamente desse tipo de bases necessárias que me estou referir. O trabalho é mais como um mal necessário e despoletador. Trabalhando-se, uma série de consequências desenrolam-se como um pesado novelo que desce em vão de escadas. O que pesa é o trabalho, o fio que vai ficando para trás, é tudo o que dele se desenrola. Podemos começar pela segmentada linha de cansaço. Psicológica. Física. Vivencial. A parte psicológica é uma das primeiras a desenrolar-se nos degraus que pretendemos subir, mas no entanto, vai em sentido contrário e descendente. A física dá-lhe seguimento. A vivencial é a continuidade da linha que permanece ligada ao novelo.
Hoje, domingo, o novelo vai caindo pelas escadas abaixo. Amanhã é segunda, uma segunda chuvosa de verão estranho.
Decidi largar o novelo para me libertar da sua gravidade, e assim poder dar cumprimento ao outro novelo implícito, o novelo que por vezes se deixa engolir por aquele que caiu pelas escadas abaixo. Pode parecer estranho imaginar um novelo a engolir outro pela sua boca que não existe, mas a verdade diz-me notoriamente que isso acontece. Digo isto por constatação. Nos últimos dias os dois novelos tem-se emaranhado um no outro, e só hoje, depois de muito esforço, é que consegui soltar o meu fio a que posso chamar simbolicamente de escrita do outro a que posso chamar dramaticamente de trabalho, evitando assim, a queda dos dois pelas escadas abaixo que servem de base para o local onde me encontro. Só depois de algum esforço aprazível consegui fazer com que o meu desejável novelo subisse de novo as escadas até mim bem enrolado como uma esfera de fios, para assim, ver, sem olhar directamente, que o outro novelo, o pesado, já se encontra bem lá no fundo à beira da porta de saída do prédio. A ponta por cá continua.
Quanto à do meu belo novelo, está algures por aí emaranhada pela cidade. Não a cidade dos prédios em construção, mas sim a cidade em construção, a minha cidade. A cidade labiríntica que só eu compreendo, que se vai desenrolando pela ponta de fio que é a do meu pensamento e que bem junto a mim se encontra, desenrolada do novelo que guardo como compreensão. E a escrita é isso mesmo. Um encontro que se guarda maleável para sempre. Um fio enrolado de forma a dar forma a uma bola que nunca é a mesma porque o seu tamanho cresce e mingua mediante o ritmo complexo dos dias. Hoje contrariei e desemaranhei tudo o que previa. Mesmo esvaziado pela saturação poeirenta dos últimos dias que me impedia de escrever devido a necessidades como a contemplação e a descontracção psicológica, soltei-me do fio que me prendia à letargia e que me ia impedindo de falar pelas palavras escritas. Rodeei-me de componentes que me saciam a sede que tenho sempre. Letras. Palavras. Frases. Metáforas. Hipérboles. Linhas. Virgulas. Símbolos. Pontos. Parágrafos. Um texto. Voltei ao meu mundo em construção, à minha cidade natal que moldo a meu gosto com as minhas próprias duas mãos. Sem prédios. Nem obrigações. Apenas a liberdade consciente de ser e procurar evidenciar o que se escondeu em mim nos últimos dias, de cansaço, que me impediam de desenrolar o novelo que se escreve por si.

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