segunda-feira, julho 9

A RESPEITO DO CONCEITO DE RESPONSABILIDADE

No autocarro, cânticos embriagados foram estalando pelo caminho, e aos poucos, os vidros esfriados pela noite. Um bando de rapazes e tenras raparigas tinham entrado na paragem anterior munidos de cervejas e instrumentos vocais capazes de agoniar o mais paciente dos surdos. Encostado no meu canto fui delirando alegremente com tal imagem sonora. Ver as garrafas de cerveja e sentir um gosto seco na boca fizeram de mim um ser desesperado. Os cânticos eram verdadeiramente agoniantes mas foram suficientemente bons para me fazerem rir à parva e desejar fugir do autocarro rapidamente. Questionei a possibilidade de partir o vidro e saltar borda fora…
Chegado ao destino o silêncio falou mais alto. Estava uma noite agradável, as ruas estavam apinhadas de caminhantes a afunilar para a entrada do enorme barril plantado a duzentos metros do mar rumorejante.
Começou a odisseia. No dia a seguir iria trabalhar bem cedo, sem saber bem porquê, tal responsabilidade não me entrou na cabeça, fugiu para longe da minha percepção. A preocupação era agora outra. Álcool. Queria álcool e devaneio selvático. Queria entorpecer o cérebro e dar asas ao espaço sideral, o espaço do nada que nos serve de base como homens que somos. Comecei por uma cerveja de meio litro, daquelas cervejas manhosas que surgem como cogumelos das mais diversas formas e sabores com o intuito de chamar à atenção dos mais cépticos entre os bêbados. Na falta da tradicional, uma com um sabor mais forte e numa quantidade boa era o suficiente para arrefecer e suavizar a minha boca seca. Foi aí que dei um passo para o tudo. Para a perdição total, solta de rédeas, transformei-me em cavalo selvagem num prado amplo e natural repleto de cactos espinhosos e sequiosos de gotas de soluções aquosas multicolores. Ainda hoje, sóbrio e fragmentariamente esquecido, sinto que a veracidade desta minha história carece de pormenores capazes de dar forma coerente ao sucedido. Mas isso não é importante, a coerência não é sequer para aqui chamada e talvez por causa disso tal lembrança seja vista e analisada como se dum sonho se tratasse. Embriagado pelo álcool bebido a jorros e pelo ambiente respirado, atulhei-me em considerações e posições soltas perante estados de espírito como o meu. Não me lembro do que disse, pouco me lembro do que fiz. Recordo-me de sair da tenda das borlas e dirigir-me à casa de banho. Pouco trôpego lá fiz o meu slaloon gigante até ao mictório, lá chegado, mijei ao lado, era um acto menos custoso e bem mais natural. Depois de me consolar com a fluidez a jorros, tentei voltar ao ponto de partida… Caminhei, olhei em volta, caminhei, caminhei, voltei a olhar à procura do farol que me iluminava a alma e nada. Dei quatro voltas ao recinto sem encontrar, sem me encontrar. Entretanto voltei ao sítio de primeira necessidade e como cão que se preza por lá mijei mais uma vez. Ao apertar a pertinhola e levantar a cabeça desisti de voltar a procurar a tenda da copofonia. Um som de fundo cativou-me, vinha duma tenda grande a poucos metros de mim. Encaminhei-me para lá ao som do jazz crescente. Quatro indivíduos munidos com as suas armas enchiam de chumbos a tenda. Tocavam bem. Embalaram-me. Meteram-me dentro duma embalagem almofadada que me fez ficar por ali uns largos minutos. O corpo contorcia-se ao som de contrabaixo, bateria, saxofone e trompete. Era capaz de ficar ali até acabar, mas de repente, e sem saber agora explicar muito bem porquê, veio-me à ideia que a tenda era ali, na direcção para a qual olhei. Encaminhei-me nessa direcção e dei por mim de novo na tenda onde se encontravam os meus comparsas de borga. Estavam igualmente alegres, entorpecidos por charros de haxixe e copos à valente. Voltei a encher o meu copo. Não sei se de cerveja se de whisky, o que seria não era importante. As palavras e as gargalhadas saíam demencial e estonteantemente, uns bafos de haxe uns goles de álcool uma elevação suprema. Já não me lembrava de tal estado entorpecido. Há já bastante tempo que não me dava ao trabalho de sair de casa para beber como um cano de esgoto num dia de avantajadas chuvas. Que noite! Que memorável recordação! Que acto divino este, beber até cair para o lado e perceber nos dias que precedem que por vezes a vida é um processo de esquilo que rói nozes sem saber bem porquê. No dia a seguir uma série de orgulhos e conclusões brilhantes invadiram-me o cérebro como lapas bem vindas. Para quê prender-me sempre às responsabilidades impostas pela sociedade, se elas só existem para me pesar o espírito? Porque razão haveria de me sentir culpado por ter bebido bem e no dia a seguir não ter ido trabalhar? Tudo isso só serve para nos tolher, para sermos cães que não nossos. Entretanto perdi o telemóvel, o passe de autocarro e o maço de tabaco. E de todas essas três coisas só uma coisa me preocupou, o passe, sem ele não poderia vir até casa… Dei por mim já fora do recinto da queima dos neurónios, e os meus estavam bem queimadinhos, era naquele preciso momento um homem-peixe, um homem só, sem se lembrar tampouco dos que ficaram para trás, perdido em mim mesmo. Falava com três gajos com um ar bastante refinado, bem vestidos, com um sotaque educado, não me recordo se fui eu que os interpelei, se foram eles que me falaram, não fazia a mínima ideia de como tinha ali chegado… Lembro-me que tinham um carro clássico, branco sem capota, que estava um sol matinal maravilhoso e reconfortante. A brisa do mar lambia-me a cara, tal carro era o ideal para ir para casa. Descapotável! Rapidamente estava dentro dele depois de perceber que iriam atravessar a ponte Arrábida. Supostamente iriam para Coimbra ou para Aveiro… Quando tal estava no bairro da Pasteleira. Já num portal dum prédio carregando o meu corpo ondulante tentava perceber o que ali fazíamos, em vão, de repente um deles dirige-me a palavra.
- Estás todo maluco! – Ao ouvir isto uma espécie de choque apoderou-se de mim e abanou-me.
- Sabem que mais? Ide-vos foder! – Virei costas e dirigi-me para a rua.
Estava todo perdido, mas mesmo assim pus as mãos aos bolsos para me certificar do que não tinha. Tinhas apenas uma moeda no bolso, insuficiente para apanhar o autocarro que ainda não sabia qual era nem para onde. Dirigi-me para o táxi que me tinha trazido gratuitamente para ver se não tinha deixado cair pelo banco de trás as minha coisas, confirmou-se, nada estava por lá. Apetecia-me um cigarro. No tabelier algo plastificado reluziu com a luz do sol. Já de maço de tabaco na mão acendi um cigarro e encaminhei-me pelas ruas da até então desconhecida Pasteleira. Pela rua e àquela hora, desconhecida na altura, já andavam umas quantas e frescas pessoas. Velhinhas com sacas. Cães esfaimados e vadios. Senhoras de meia-idade… Dirigi-me a uma e perguntei-lhe por transporte.
- A senhora por acaso não me sabe dizer qual e onde posso apanhar o autocarro para o porto? – Não estava assim tão mal afinal, ainda conseguia articular uma pergunta com pés e cabeça.
- Você foi para queima!... Sei sim senhor, venha comigo. – Acompanhei-a enquanto me falou com orgulho da sua filhinha que há bem pouco tempo tinha acabado um curso qualquer e já se encontrava a trabalhar. Indicou-me então a paragem e, confortado pelo sol, por lá esperei pelo autocarro. Depois de pensar no que haveria de dizer, as desculpas que serviriam de desculpa plausível, e de muitas outras e confusas suposições, chegou o autocarro, instintivamente optei por entrar sem dar cavaco ao motorista e sentar-me. Já no lugar, ao lado duma universitária orgulhosa pelo pólo que vestia e com um cheiro agradável a perfume, olhava furtivamente para o retrovisor do motorista à espera duma repreensão ou duma pergunta constrangedora. Nada disso aconteceu. Observei calmamente os transeuntes, tirei conclusões não absorvidas pela memória e de repente já estava na baixa da bela cidade do Porto. Centenas de pessoas por lá andavam. Um ritmo de dia de trabalho rolava pela calçada. Para cá para lá. A uma velocidade constante. Autocarros. Camionetas. Carros motas. A estação de São Bento a vomitar pessoas pela boca que são as suas portas.
O barulho maquinado pelo barulho citadino dava uma ambiência esquisita mas agradável à vista. Toda aquela vida rolava diante dos meus olhos descomprometidos. Olhos humedecidos pelo sono mas no entanto bem abertos. Estava então parado. Não me lembrei sequer de olhar para o relógio da estação. Entrei no fosso para o metro. Tinha uma moeda suficiente para o meio. Decidi entrar sem pagar. Sempre que andei de metro nunca vi um revisor de cartões. O metro chegou em minutos como uma cobra amarela cheia de vítimas no comprido estômago que é o seu corpo. Entrei de espírito leve sem medo. Ao atravessar a ponte D. Luís I maravilhei-me com as duas cintilantes e iluminadas margens, com o rio douro e a sua cor doentia e suja, rejubilei. Entrei na periférica deusa Gaia subi a avenida movimentada e saí na minha destinada estação: JOÃO DE DEUS. Já na rua, com os ouvidos avivados pelo movimento perpétuo, caminhei calmamente e em piloto automático para casa. Pelo meio parei numa pastelaria para gastar a minha última moeda num belo e doce bolo que justificava, neste caso sim, o gasto; seria capaz de comer mais uns quantos que figuravam na montra que ladeava o balcão, mas não tinha dinheiro suficiente… O meu ritmo era lento, ritmo de quem contempla e nada mais, sem obrigações impostas. Já nem me lembrava que tinha assinado um contrato de trabalho de seis meses no dia anterior. Atravessei o jardim de Soares dos Reis, apreciei o passarinhos, ouvi as suas melodias intrincadas, olhei para a estátua fria dum falecido e rapidamente dei por mim na cama depois de ter tentado perceber o que me tinha acontecido ao falar com um acompanhante da noite anterior. A tentativa de nada valeu. Decidi deitar-me sobre o assunto.
Nos dias seguintes o puzzle foi-se compondo. Depois de acordar com uma ressaca bastante agoniante, propus-me a arranjar uma desculpa credível afim de me justificar perante o homem que me contratou. Um homem estranho diga-se de passagem. Homem dos seus cinquenta e poucos anos. Sobrevivente da guerra colonial, filho duma guerra que o obrigou a sofrer. Pelo que me apercebi ao puxar conversa com ele na carrinha, nos dias anteriores, a caminho das diversas obras em que me vi obrigado a estar para ganhar dinheiro, era um personagem natural e consequencialmente desconfiado e capaz de mudar bruscamente de humor e tom de voz ao mínimo toque da sirene que só existe na cabeça dele. Tal retrato dele, na minha cabeça estonteada pelo álcool recesso do dia seguinte, era motivo para me assustar o suficiente e fazer-me concluir que trezentas das desculpas que engendrava seriam obviamente desmacaradas por aquele ser estranho e alienado. Consegui nesse mesmo dia perceber que não tinha apanhado uma daquelas pielas em que nos tornamos pesos aborrecidos e estupidificados pelas atitudes tomadas. Tal suposição assombrava-me já que me tinha deparado sozinho e perdido na manhã longe de todos aqueles conhecidos com quem partilhei a maior parte da noite. Mais sossegado, mas ainda mergulhado em planos justificativos capazes de me impedir de voltar à penúria de receber metade dum pobre e medíocre ordenado mínimo, tentava insistentemente encontrar uma mentira verosímil. Soube entretanto, e não no dia de folga pessoal, que me tentaram em vão arrastar para casa na esperança de que no dia seguinte me encontrasse no armazém frio e saturado de peças de alumínio e materiais afins. Nada disso aconteceu, e o meu estado era já tal nesse preciso momento de preocupação alheia que argumentei que ficaria com um personagem que em tempos rejeitou água a um grupo de amigos, em que eu me incluía. Essa rejeição é digna de ser escrita em jeito de parêntesis. Numa noite de verão em que estávamos na casa dessa pessoa somítica, embriagados por charros gordos típicos de quem corta sabões em vésperas de umas férias regadas a fumos acastanhados, a secura apoderou-se das bocas dos presentes, água foi pedida, à torneira se foi e de lá só saía um líquido amarelado, foi-nos dito pelo dono da casa que não haveria água já que a da torneira se encontrava naquele estado colorido, tal argumento foi motivo suficiente para se aceitar tal estado de desespero. Os charros continuaram a rolar a um ritmo alucinante, pela sala o nevoeiro condensava-se numa nuvem sólida e contagiante, até que alguém foi à cozinha verificar se a água tinha perdido a cor e reparou que algures pela despensa uns quantos garrafões de cinco litros cheios de água límpida repousavam num mistério escurecido… Recordar isto foi uma coisa muito estranha, estava mesmo perdido em etílico, recusei-me a vir para casa com pessoas que estimo bastante para ficar com uma pessoa capaz de rejeitar um bem essencial aos amigos só para reforçar a ideia de mitra que já se tinha sobre ele… A última pessoa conhecida com quem estive e que me recorde foi com ele. Pelo que me disse uns dias a seguir, passaram-me um copo de whisky para mão.
- Venho já!
Agora que penso sobre o assunto afincadamente, na esperança infrutífera de perceber melhor os acontecimentos, ocorre-me à ideia um pequeno facto questionável. Bombeado por um ataque de ebriedade talvez me tenha apercebido que me encontrava sozinho com o homem-mitra e, como consequência reaccional, tinha-me posto a trote trôpego e cambaleante para bem longe. Ainda hoje, muitas dias depois desse dia importante e memorável, não consigo perceber como é que tal persona foi de bom grado comprar os bilhetes para a festa do barril gigante. Em jeito de paranóia eu acho que ele sabia de tudo isto, que tudo o que aconteceu iria acontecer. Talvez tenha sido ele a roubar-me. Talvez tenha pensado para si: «vou levar aquele beberrão destravado e roubá-lo à boi quando estiver todo cego!» Sinceramente não acredito minimamente no que acabei de afirmar. Mas é-me mais difícil acreditar que pessoa que rejeita água aos amigos tenha ido para uma fila enorme para me comprar um bilhete com o seu próprio dinheiro.
Já à noite, ainda com o álcool a acidificar o meu esófago, consegui descortinar a tempo uma desculpa capaz de convencer o meu patrão tresloucado a acreditar numa mentira elaborada. A minha mãe teria ido para o hospital. O que não era mentira nenhuma. Ao constatar que não tinha às seis da madrugada posto ainda os pés no chão do meu quarto tentou-me ligar. Obviamente não o conseguiu. Consumida por um pavor materno ligou a umas quantas pessoas que nada souberam dizer sobre o meu paradeiro. E o pior é que nem mesmo o meu companheiro de trabalho que fora contactado à hora laboral soube dizer algo sobre o meu paradeiro. Apoderada pelo desespero começou a ligar desenfreadamente para os hospitais da cidade, em vão…
- Minha senhora, não entrou aqui nas urgências ninguém que corresponda ao nome do seu filho. Mas no entanto temos aqui um carreirinho deles sem identificação!... – aí a aflição fê-la sentir ainda mais os braços pesarosos do desespero.
Começou a correr os hospitais. Para todos os efeitos foi aos hospitais e de um modo mais singular «foi para o hospital» e como tal, dizer tal coisa ao meu patrão era uma boa hipótese com bases capazes de reforçar a confiança na minha afirmação de meio mentiroso. Aliado a esse argumento decidi-me por não pôr muito entulho na argumentação perante a identidade autoritária do patronato. Ser pragmático, esperar a reacção e a partir daí complementar as suas dúvidas com afirmações vagas mas plenas de coerência.







Acordei no primeiro dia de trabalho a seguir ao tiro com uma pressão no peito e uma consciência dorida de quem pode perder um emprego merdoso pelo qual teve que esperar oito meses para arranjar. Se fosse despedido, um rótulo de irresponsável seria colado na minha testa apenas visível aos olhos dos outros. Para mim, a minha atitude livre de tudo, não foi acto de irresponsável, muito pelo contrário. Fui porque quis. Bebi porque quis. Fiquei de bolsos vazios como consequência do que quis. Foi tudo obra da minha pessoa, e sendo assim, tais acontecimentos foram absolutamente da minha e singular responsabilidade. Não recusei o álcool, recusei-me a vir embora e fui senhor livre dos meus actos, larguei tudo, agarrei-me à minha responsabilidade e a nada mais.

1 comentário:

Mazi disse...

Eu sou o Diabo...
O único ser superior existente...