domingo, julho 15

COMO SEMPRE!

Hoje foi um daqueles dias em que caímos numa crise existencialista da mais bela e concludente que pode haver. Logo de manhã como sempre levantei-me para ir trabalhar nas obras como sempre de há uns tempos para cá. Ganhar dinheiro! É preciso ganhar dinheiro da melhor maneira possível! Levantei-me atrasado como sempre também. A correr vesti-me, preparei o saco, esqueci-me de algo que já não me recordo, como sempre também, tive que voltar a subir as escadas de volta ao meu quarto para vir buscar a minha própria cabeça e voltá-la a pôr no sítio. Estava um rico dia de primavera invernosa, dúbia como um raio dos que se fizeram ver nos céus da tarde. Ora sente ora não sente. Um passo apressado ao ritmo demarcado pela escrita que me obriga a dactilografar dum modo real e encantador. Por acaso ainda não chovia mas no chão já não se via o pó e o áspero. Pedaços de espelhos em estados líquidos a dar forma massiva sarapintada nas concavidades do passeio, aqui e ali, de todos os tamanhos formas e reformas. Um todo que se deixa transpirar e aspira o seu próprio suor! Ora no céu! No ar! No chão! Uma força descontrolada pelo ritmo sistemático do ordenamento do tempo, o nosso tempo e o tempo da contemplação. O único tempo que se faz sentir. Único como circunstância complexa e fundamental. O que nos sorve e reabsorve que se pode chamar de relógio intemporal. O fim! O fim já foi, mas de manhã de passo apressado como um autómato digno de tal adjectivação ainda consegui ver o autocarro que devia apanhar como sempre. Devia! E como tal devo dizer que não era só eu o autómato, afinal parece que é algo contagioso. Vi pássaros esvoaçantes. Gaivotas e outros seres vivos difíceis de distinguir. O sono acelerado pelo pé pesado não permitia ter grande discernimento óptico e tendo em conta que os olhos não se queriam muito abertos para a “vida” era sem dúvida nenhuma uma bela duma compreensiva contemplação. A música, apenas nos ouvidos, dava a banda sonora como sempre do dramatismo teatral que estará em palco, chega-se a ver as mesmas peças todos os dias, tipo actos com pequenas diferenças interpretativas, uma peça por dia! Até as nuvens andavam às peças, o vento via-se nas formas magnéticas ao ritmo da minha manhã. Tudo e todos adormecidos numa peça, absorvidos pela tragédia matinal que tem uma imensidade de espectadores acordados: não eu, como é óbvio, nem todos os outros bonecos exteriores, apenas o conteúdo, as suas esponjosas formas de tecido acetinado pela chuva que entretanto começou a cair. Foi como um sossego sonolento, as gotas a caírem uma por uma do seu todo na naturalidade do Inverno que foi atropelado por um camião e desfeito em pedaços frescos e resfriados que se começaram a sentir na força do vento desfragmentado pelas formas, as tais que nos podem levar para longe! «Um belo sonho! Vou com o vento!... Sou um pássaro como aquele que vai ali em cima, o tal que não consigo identificar!...» E sendo assim a voar vou em direcção ao rumo do bafo ventoso que dá direito a uma viajem numa divisão movimentada em que diversos bancos figuram à volta do espaço ambulante carregado de carneiros mal mortos com um bafo quente e doentio carregado de alho com cebola podres dum monte qualquer agreste. É o momento Zen! Com publicidades a apelar a uma espiritualidade apaziguadora e sonolenta ao ritmo acelerado das circunferências de borracha alinhadas pelo eixo constrangedor primaveril. Um barulho evocativo de baixa frequência numa versão maquinal dum rumorejar religioso imparável. Os olhos pesam. As cabeças tombam. As crianças irritam, nunca souberam respeitar os princípios fundamentais do seu tempo, sempre com uma indiferença superior, uma inocência natural da mais pura entre as almas de todos os adormecidos e conformados. E lá vou eu, a ver adormecido no momento imagens coloridas e monótonas! As mesmas pessoas os mesmos gestos, uma percepção tardia e reflexiva do íntimo da noite que respira em mim. Uma buzina na cabine deambulatória fez-me carregar um botãozinho anteriormente. O inicio duma manhã de trabalho sob a luz pálida dum sol escondido pela força do vento. Um pé no passeio uma posição, um olhar para o céu a ver as nuvens a correrem a um ritmo divinal. Umas cuecas estreitas de fora do rabo sexy na mesa ao lado, como sempre! Um café acompanhado ao som das páginas do jornal do costume. Uma ida e volta determinada e custosa! A contagem decrescente ao som do movimento perpétuo no passeio pesado pelas solas. Está lá o porteiro. Tiro a senha horária que não vejo nem existe substancialmente, guardo-a no bolso do casaco que me fica a matar sem tão pouco lhe tocar.
Já na carrinha a conversa rola de passe em passe, pequenos remates defesas carrinhos lançamentos do meio para a esquerda da carrinha branca e perigosa nas mãos dum distraído. Sempre frenético mesmo quando calado o condutor mantém o ritmo acelerado da carroça carregada de utensílios e tubos contemporâneos. Mete o rádio mais baixo, fala do que lhe apetece, futebol e outros interesses televisivos a incidirem para um burburinho religioso que absorve muitos crentes. Conversas sobre temas que só preocupam quem anda a tentar fugir para o outro lado do espelho da criminalidade. Aí, uma revolta mais séria dá corpo pesado à voz do homem que vai a subir as escadas para o abismo, rumo à exploração maquiavélica da vida, cada passo uma abolição das barreiras que impedem a corrida para o ouro, a subir empurrado por homens felizes como eu que pelo menos e sarcasticamente percebem quem são, vê-lo a rejubilar com saídas e entradas capaz de bater o mais sério do homem, toques subtis ao ritmo do sentimento de superioridade. O trânsito condensa e a conversa vai dando uma de filosófica, filosofia barata, dum lado ao outro, desde o condutor tresloucado e brusco distraído nas curvas que não vê enquanto fala, que nem percebe tão pouco que se está a gozar com ele tão absorvido na sua demência cavalgante. À minha direita no lugar do morto está um homem que dá um empurrão com mais força, calado. De repente uma pausa para o silêncio adocicado pelo som que debita do rádio e faz chorar lágrimas de emoção! E noutras circunstâncias, de lembrança de aspirador de dourados simbólicos, a palavra trabalho impera sobre o fundo do assunto que se explana do Interlocutor, aí a conversa resvala para um campo que não me interessa nem falo, limito-me a chorar lágrimas secas, a ouvir as informações do trânsito da cidade explosiva ou até conversas gravadas pelo directo memorável duma entidade que se encontra a gravar o que diz. O morto ressuscita ganha vida marionética pactua a sangue que escorre por distracção das mãos, responde militarmente ao superior hierárquico duma guerra injusta que se fez sentir por altura dum passado de quem manda. «Sim senhor!» diz o morto por entre dentes sem tão pouco perceber o seu grunhido de baixa frequência. Na rádio dizem entretanto «Tá no ir, não há que perder tempo, hoje chuva para o dia todo mesmo que não chova!» e eu espreguiço-me pelo movimento descendente da saída para o chão molhado por um orvalho matinal frondoso.
A sinfonia de metais da quinta feira de alegria já chegou, temos que pegar nos condicionados instrumentos tirá-los da caixa e juntarmo-nos ao grupo extenso de músicos que dá ritmo estonteante e embalado pelas mãos do inconformismo conformado, que com muitos anos de treino e genética recente vão prologando e compondo a melodia dos artistas presentes. Entre todos de tudo um pouco.
As paredes ainda estão cor de laranja, uma cor muito em voga em paredes que não se hão-de ver naquela cor, pequenas quadriculas acinzentadas ostentam ordenadamente tijolos que falam quando não se percebe quem. Os fios emaranham-se no chão, os caminhos são muitos e a música berra energeticamente duma aparelhagem sonora a fazer dueto com o som áspero dos movimentos da nossa orquestra dramática em construção, quanto mais se tocam os diversos instrumentos em mais melodioso se materializa o ensaio, o tempo vai passando e a experiência enriquece o reportório de notas que se fazem expandir pelo o ar poeirento, o martelo acústico e o pneumático são os sons mais graves que impõem o ritmo urbano entre todos os demais instrumentistas. O som intercalado latejante é rodeado concentricamente ao ritmo dos timbres dos diversos intervenientes. (...)

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