domingo, fevereiro 18

TRECHOS DE UM LIVRO SUBLIME

- Quem era não sei - respondeu Cosimo - , mas se andais à procura dum homem que passou por aqui a correr, digo-vos que ele tomou a direcção do riacho...
- Um homem? É um homenzarrão que mete medo...
- Bem, daqui de cima parecem todos pequenos...
- Muito obrigado a Vossa Senhoria! - agradeceram os beleguins, desatando a correr em direcção ao riacho.
Cosimo voltou para a sua nogueira e retomou a sua leitura de Gil Brás. João dos bosques continuava abraçado a um ramo, muito pálido no meio da barba e dos cabelos hirsutos e avermelhados como a erva seca dos campos, cheios de pedaçinhos de casca de árvore, folhas pequenas e agulhas de pinheiro. Estudava Cosimo com os seus dois olhos verdes, muito redondos e espantados; era feio, muito feio.
- Já se foram? - decidiu, por fim, perguntar.
- Sim, sim - respondeu Cosimo, com ar afável. - O senhor é que é o salteador João dos Bosques?
- Como é que me conhece?
- Bem, conheço-o de ouvir falar de si, conheço a sua fama.
- E o senhor é aquele que nunca desce das árvores?
- Sim, sou. Mas como sabe?
- Bem, da mesma maneira... A fama corre.
Olharam-se cortesmente, como duas pessoas de posição que se encontram por acaso e ficam satisfeitas por saberem que não são desconhecidas uma da outra.
Cosimo não sabia que mais dizer e, assim, retomou a leitura.
- Que está a ler?
- O Gil Brás, de Lesage.
- É bonito?
- É, sim, é bonito.
- Falta-lhe muito para acabar?
-Porquê? Bem, faltam-me cerca de umas vinte páginas.
-Porque, quando o acabasse de ler, queria perguntar-lhe se mo emprestava... - sorriu, ligeiramente escondido.
-É que, sabe, passo os dias escondido sem ter nada para fazer. Gostava de ler um livro de vez em quando. Uma vez assaltei uma carruagem. Trazia pouco que roubar, mas havia um livro e eu trouxe-o. Levei-o comigo, escondido debaixo da capa; teria preferido desistir do produto todo do roubo a perder aquele livro. À noite, acendi a lanterna e ia para ler... quando vejo que era em latim! Não percebia nem uma palavra... - Abanou a cabeça. - Como não sei latim...
- Bem, a verdade é que o latim é difícil - disse Cosimo, sentindo que, mau grado seu, estava a tomar por ares de protector. - Este aqui é em francês...
- Francês, toscano, provençal, castelhano, compreendo tudo - disse João dos Bosques. - Até sei um pouco de catalão: Bon dia! Bona nit! Està la mar molt alborotada.
Em pouco mais mais de meia hora Cosimo acabou de ler o livro e emprestou-o a João dos Bosques.
Assim principiaram as relações entre meu irmão e o salteador. Mal João dos Bosques acabava de ler um livro, corria a restituí-lo a Cosimo, pedia-lhe outro emprestado, voltava imediatamente a encafuar-se no seu esconderijo secreto e mergulhava profundamente na leitura. (...)

A quem era João dos Bosques útil agora? Se passava a vida escondido, de lágrimas nos olhos, já não dava mais golpes, não fazia roubos de espécie alguma, no bosque mais ninguém podia fazer o seu negócio, os beleguins todos os dias faziam batidas e mal achassem que um desgraçado tinha ar suspeito era o suficiente para o levarem para a cadeia. Se se acrescentar a isto a tentação que representava o prémio que se oferecia pela cabeça de João dos Bosques, imediatamente se torna claro que os dias deste último estavam praticamente contados. (...)


As associações tornam o homem mais forte e põe em relevo nele os melhores dotes do indivíduo singular e conferem, simultaneamente, aquela espécie de alegria que, permanecendo uma pessoa só, raras vezes sente constatar como é elevado o número de pessoas honestas, corajosas e capazes e pelas quais vale a pena quererem-se coisas boas; ao passo que, vivendo-se isolado, se chega facilmente à conclusão contrária, descobrindo-se quase sempre a outra face das pessoas, essa face perante a qual é sempre necessário ter sempre a mão pousada na espada. (...)


Todo aquele que quiser olhar a terra convenientemente deve manter-se à distância necessária para o fazer (...)

Conheceram-se. Ele conheceu-a e conheceu-se a si próprio, porque na verdade nunca se tinha conhecido. E ela conheceu-o e conheceu-se a si própria, porque, muito embora sempre se tivesse conhecido, nunca pudera reconhecer-se daquela maneira. (...)

O amor era para ele um exercício heróico: o prazer misturava-se frequentemente com provas do seu ardor, de generosidade, de dedicação e de tensão de todas as faculdades de sua alma. O mundo deles eram as árvores mais intrincadas, de ramos mais torcidos e difíceis. (...)

- Porque me fazes sofrer assim?
- Porque te amo.
Desta feita, era ele quem se irritava:
- Não, não me amas, não pode ser verdade! Quem ama deseja a felicidade e repele a dor.
- Quem ama deseja apenas o amor, ainda que para tal seja necessário experimentar a dor.
- Então fazes-me sofrer de propósito.
- Sim, para ter a certeza que me amas.
A filosofia do barão recusava-se porém a ir mais longe.
- A dor é um estado de alma negativo.
- O amor é tudo.
- A dor deve ser sempre combatida.
- Ao amor nada se recusa.
- Certas coisas nunca admitirei.
- Tens de as admitir, inevitavelmente, uma vez que me amas e sofres. (...)

O Barão Trepador, de Italo Calvino

1 comentário:

Unknown disse...

vamos mas é todos dar a fugueta para cima de uma árvore bem alta.... talvez encontrar um sentido para o mundo!