domingo, fevereiro 25

O BAILARICO




Ontem, que não foi assim há tantas horas, tive o privilégio de ir a uma daquelas festas em que ficamos felizes por só haver uma vez por ano; a uma festa de aniversário. O convite foi recebido com um certo desdém. Quem me convidou foi um elemento da minha família que fazia nada mais nada menos que quarenta e três anos. O local escolhido para tal celebração foi um restaurante com música ao vivo; um daqueles sítios que nos causa uma indigestão só pelo simples facto de viver à custa de bailaricos à boa moda portuguesa. Entre garfadas e goladas de vinho ia ressoando nos meus ouvidos: Quim Barreiros, Tony Carreira, as de outros tempos badaladas Doce, e outros belos compositores dignos dessa praça musical e ampla que é a música popular portuguesa, vulgar música pimba. A mesa estava repleta de gente que posso denominar de próxima ao meu ser-bom-ouvinte e sempre atento a tudo: ora era entre outros um sujeito que só sabia falar de violência e de porradas orgulhosas devido às faltas de respeito perante o seu cabedal pseudo-imponente, ora era uma pessoa que admiro muito, carregado de brejeirices próprias para a ocasião festiva sempre pronto a fazer rir o mais céptico dos foliões, ou um casal cheio de amor que nem para comer largava as mãos apaixonadas, ou um tipo semelhante ao John Lennon mas numa versão aportuguesada com pinta de galã frequentador daqueles tascos com cortinas à porta que deixam escapar detrás uma linha delineada por um vermelho vivo de tonalidade mais que duvidosa ; e eu! sentado no meu canto, com uma garrafa de muralhas para suavizar e engrandecer tal cenário promissor. Nas mesas circundantes, personagens dum daqueles filmes do Fellini, velhotes emproados, enjeitados com o seu melhor fato para virem ao baile; por vezes como pingas, jovens como eu, aqui e ali, sempre de semblante coberto por um sorriso de alegria por tal visão quase surreal carregada de hilariedade.
A noite começou calma, embora a música soasse pelo salão como bombos arrufados numa rua em dia de fanfarra, as pessoas permaneciam sentadas em frente aos seus pratos, devorando selvaticamente os suculentos nacos de carne e de peixe. De vez em quando, ou melhor, à boa maneira portuguesa, lá se ia empurrando o comer pesado com belas copadas de maduro tinto ou de verde, mediante os gostos e o diâmetro da goela de cada um; até que, consequência de um fígado carregado de álcool e já com as faces avermelhadas, mas não de vergonha, aqueles seres começaram a cobrir-se de sorrisos tão alegres que de repente o salão estava repleto de seres felizes e abstraídos das suas monótonas vidas, bamboleando-se ao ritmo das mais hilariantes e surpreendentes musicas; as velhotas mexiam-se ao ritmo da sonoridade – iam acima e iam abaixo como a música pedia – como jovens cheios daquela energia típica da flor da idade; os velhotes mexiam-se como cobras, e uma vez ou outra tentavam deixar cair – culpando talvez a força bacoreana do vinho - a mão nos cus secos e usados das suas parceiras. Muitas músicas rolaram… Aos poucos, o salão esvaziou para um descanso para recuperar forças e molhar a goela, duas ou três músicas rolaram só com um ou dois casais de idosos a dançar: quais bravos dançarinos duma mocidade de bailarico não perdida! A folia voltou, inflamados pelo álcool cada vez mais senhor dos seus corpos – e do meu também, mesmo permanecendo sentado e de sorriso cada vez mais rasgado na cara -, começou o jogo da cadeira. Cada espaço silencioso intercalado por músicas, fazia as pessoas voltarem ao seu lugar, mas nem dava tempo para enquadrarem o cu na cadeira, começava logo outra bela música e lá iam eles, mais ébrios e felizes do que há minutos atrás, dançar freneticamente sem se lembrarem das mazelas psicológicas impostas pela sociedade que faz dos velhos seres sôfregos; talvez no dia a seguir se queixassem disto e daquilo. Uma vontade de rir assomou-me, talvez fosse o vinho a dar sinais de si. Enquanto observava tudo isto divertidamente, o meu companheiro da direita de mesa lá continuava:

- Conheço um gajo, grande bicharoco, que é segurança do S, ganda maluco, conhece todos os seguranças da noite! Oh moço, uma vez, um gajo veio contra ele na discoteca, não teve mais nada, agarrou-o pelo colarinho, deu-lhe um bojardo arrebentou-lhe a boca toda. Ainda pegou nele e atirou-o para o chão como um fardo de palha. – dizia este tipo de coisas com um orgulho de gorila enquanto enchia o meu copo.

- Foda-se, esse é que bate mal!... – respondia eu enquanto olhava para o copo e sorvia mais uns goles. Bem devagarinho, embalado pela violência da conversa repetitiva que não era mais do que o retrato do cenário dum subúrbio mundial cheio de necessidades e aventuras dignas de um filme, ouvi as mais surpreendentes realidades de dealers de branca; ciganos perseguidores de homens apaixonados pelas suas filhas; gajos carregados de armas, as tropas do exército da urbe; ladrões de chapéus; carros quitados até ao auge da potência mecânica; tarados que vão para quecódremos observar casais a copularem dentro de seus carros, sendo consequencialmente espancados devido à sua curiosidade demencial por dez/quinze homens que formam instantaneamente milícias do sexo automóvel; tudo isto e outras histórias mirabolantes deste mundo que é tão nosso.

Ali, num salão de baile à boa maneira portuguesa, apercebi-me do triste equilíbrio que rege a vivência; senti as mãos bem pesadas pousadas no chão: na mão esquerda estava o peso da abstracção, na direita, o da violência.

Vendo bem, talvez o peso sentido nas mãos tenha sido obra das duas garrafas de muralhas que chupei até ao casco depois duma travessia divertida pelo deserto que é a abstracção!

2 comentários:

Anónimo disse...

=) Bem à portuguesa! Ah, como é bom tudo isso existir!

Unknown disse...

esses óculos de muralhas são brutais... uso sempre que posso...

aquele abraço!