quinta-feira, julho 31
TAL COMO PEDISTE
nunca esquecerei
a praia e a melodia
memorável das ondas ainda
vivem, tal como as tuas palavras
Sempre que lá passo
que piso aquela areia
a catarse
o vento sussurra a
tua voz a memória e
a dor decrescente…
quarta-feira, julho 30
Sede Crónica
a sede de infinito. Perdidos
completamo-nos. Eu
levanto-o, ele ampara-me
somos companheiros folgados.
Aconchegamo-nos na mesma
Substância. Nunca estamos sós.
Somos variáveis da necessidade.
Fugimos à transparência como
amantes no ciúme.
segunda-feira, julho 28
CONTRA OS OPTIMISTAS
e chamam à fraude boa fortuna.
Crêem no Batman e na Virgem Maria.
Duvidam do frio, não da polícia
e nunca dão crédito àquilo que vêem.
Reservam a tempo um lugar na geral,
põem o pé entre duas ciladas
e ficam a rir-se nas fotografias.
Sujam a roupa tal como nós, mas
mandam-na sempre a lavandarias
que sabem tratar dos casos difíceis.
Nunca dão ponto sem antes o nó,
mas fazem um laço por cima do nó.
Compram revistas de aval científico
em cujos artigos se prova o seguinte:
é quase impossível determinar
se é falsa uma lágrima ou se é verdadeira.
Depois, jantam em grupo, falam dinheiro,
guiam a vida por grandes veredas e ouvem
sininhos, muitos sininhos de música sacra.
José Miguel Silva
domingo, julho 27
Óbvio, é o caminho que tens a seguir.
Os labirintos são para os assombrosos.
Não para ti. Nunca para ti que
Não perdes tempo, que alguma vez
Imaginaste uma cadeira, uma sala de
Espera, e muito menos o limbo.
Restringe-te à via da tristeza:
Do outro lado da linha contínua
Reside apenas a felicidade
Espelho que julgas atingível
Inquebrável e absoluto.
quinta-feira, julho 24
BINÓMIO
Não desejo a morte
Mas não quero viver
Viver é fazer parte de
Amar a vida é cumplicidade
E eu não vivo de facto
Não estou morto
Não amo a morte
Mas não vivo
Viver é compactuar
É ter medo de
E o medo rói
Um medo
Que cresce
Que passa
Que leva a vontade de viver
Quanto mais vivo
Mais cedo em viver
Não estou morto
Mas também
Nunca vivo só.
AFOGAR AS MÁGOAS
Trepa pelas paredes forradas a álcool. A necessidade
Capaz de nos entorpecer, sob o estrelado fundido do
Céu enevoado que arrebita os corpos,
Dança imutável que nos trouxe pelos caminhos mais
Belíssimos da tristeza solitária: labiríntica introspecção ao
Ritmo sonoro de um motor. Sempre bem acomodado, no
Banco turbulento do autocarro a assumir o peso da alegria
Como um transcendente ressacado, depois de mais um calhau
Para o nada. Sempre a cidade a chorar
Iluminada pelos candeeiros da vontade dos pássaros nocturnos.
Sempre um todo poeirento e vicioso, um belo vício
Como todos os vícios que nos libertam. Sempre os
Transportes misantropos para esta minha escrita de sangue, suor e
Alegria. Sempre a vida a ser compreendida e aceite, como
A morte dum inevitável familiar, entre campas festivas do
Cemitério dos sentidos. Sempre e do outro lado do
Vidro, as varandas a cuspir olhares fumegantes -lembram-me o
Fumo da minha varanda para o mundo. Sempre o
Mesmo e mísero rectângulo para o infinito, para a
Verticalidade dos corpos, na praça em que os leões se
Refrescam depois de uma tarde pelas áfricas do nosso espírito
Sempre quixotesco e ultrapassado. Sempre o humor o
Pedestal dourado na tinta dos edifícios, a noite
A fervilhar terapia da loucura. Sempre a forma sana de combater
A velocidade indómita do tempo, as gargalhadas
A abafarem todas as vozes na praça. Sempre o somatório blindado
E carnal a derrotar as tropas da linearidade que nos
Apaparica e distrai. Sempre a melancolia duma noite que não
Esta, lá atrás, naquele ponto de partida em que o breu, o insaciável
Morcego que me capacitou para a mutilação bem-vinda no
Caco do carácter, tomou proporções inversas mas inexoráveis nas
Fronteiras da geografia simbiótica. Sempre as estanques
Espumas bélicas e as salgadas feridas que não saram
Numa noite de solidão sóbria. Sempre a sede, a sede de tudo
Das pessoas e dos líquidos, das liquidações das
Intimações para o esquecimento. Sempre a música
Que nos embala em ninho de cucos, sempre a levar-nos
À concórdia silenciosa ou estridente de copos cheios
De copos vazios sorvidos até à última lágrima cintilante, entre
Dedos sujos e decrépitos pelo uso. Sempre os abraços que recebo
E os que já não sinto a varrer-me a alma, só porque lá, já nada resta
Para varrer. Sempre o absoluto latejar de alguém que não conheci e
Nunca hei-de conhecer alguma vez, só porque não me conheço
Tampouco. Sempre o manto a fechar-se pela crescente
E vaporosa luz do movimento perpétuo, dos sinais
Que se agitam ao vento -assustadores e irrisórios. Sempre
A cama quente pelo verão que me acolhe, sempre
O seu sorriso cansado. Das cinzas da mente, sempre o
«Amanhã é outro dia de miasmáticas incertezas»
Sempre o grito uníssono das gaivotas na maresia betuminosa
Da cidade que cresce. Sempre as asas saudosas
Do alvorário mar que já não lhes pertence, sempre e simultânea:
A mente, ao longe, como um barco rumo a nenhures.
terça-feira, julho 22
domingo, julho 20
CONSPIRAÇÃO
Choram cada vez mais, um choro agudo
De agonia, uma emaranhada conspiração
Para com os homens. Enquanto as observo,
Acendo uma tocha para a morte
No telhado sobrepovoado
Uma dança permuta, penosa
Fulminante e
Agitada
Uma destaca-se, serena,
Parabólica como o final da tarde
Procura e aproxima o horizonte
Numa língua estranha, selvagem
Leva-me até gritos agoniantes, a um ser que me traz
Prisioneiro, lancinante bailarino etéreo do corpo
E é então que as telhas ruem, que
Os sentidos roçam o absurdo. Tudo se resume
A um cigarro já apagado, ao verão, a gritos
Irreverentes a perpetuarem-se na noite
Alienados hábitos que incomodam quem dorme.
SE HOUVESSE DEGRAUS

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
quinta-feira, julho 17
NA DÚVIDA
Não sei ainda se
Talvez consiga
Não sei se talvez
Entretanto
Entalado na bruma
Cadente do dia
O saber
Tem que se lhe diga
Ocupa espaço
O corpo é ínfimo
E as mãos são grandes
Talvez
Um dia minguem
E o corpo cresça
Mas não sei se
Talvez
Um dia encontre
No desencontro
Entre
Uma talvez mão
E um talvez corpo
Uma frase
Talvez aí me encontre
Perdido da mão
E do corpo
Abandonado à certeza.
THE BEAT
Não dormi com a beleza toda a vida
fazendo inconfidências a mim próprio
dos seus encantos planturosos
Não, não dormi com a beleza toda a vida
mas com ela menti
fazendo confidências a mim próprio
de como ela nunca morre
mas jaz à parte
no meio dos aborígenes
da arte
e paira por cima dos campos de batalha
do amor
Está acima de tudo isso
muito acima
Está sentada no mais selecto dos assentos
da Igreja
lá em cima onde os administradores da arte marcam encontros
para escolherem o que há-de ficar para a eternidade
Eles, sim, dormiram com a beleza
durante toda a vida
Eles, sim, alimentaram-se da ambrósia
e beberam o vinho do Paraíso
e por isso sabem exactamente como é que
uma coisa bela é uma alegria
para sempre e para sempre
e como é que ela nunca nunca
pode inteiramente desvanecer-se
num nada que leve à bancarrota
Oh não, nunca dormi
em Regaços de Beleza como esses
receando levantar-me de noite
com medo de perder nesses segundos
qualquer belo movimento que ela esboçasse
E contudo dormi com a beleza
à minha estranha maneira
e fiz uma ou duas cenas terríveis
com a beleza na minha cama
de onde transbordou um poema ou dois
de onde transbordou um poema ou dois
para este mundo tão parecido com o de Bosch
terça-feira, julho 15
ANDA POR AÍ
Diz coisas, o que
Quer que seja, circula
Bebe mais uma
Pede outra
Diz coisas
Vive como tens que
Viver, cheio de sede. É
Assim que se vive, em
Círculos. Circula.
Berra bem alto
Gesticula em gestos
Agride, brota sangue
Dá socos no tampo da
Mesa, revolta-te
Bebe mais uma.
Pede outra
Diz coisas
Sorri demencialmente
Mostra os teus dentes podres
Cospe-te enquanto falas
Esvai-te em berros, berra
Bem alto, até perderes a voz
Levanta-te, trôpego
Circula cheio de sede
Caminha em círculos
Canta vitória na derrota
Diz barbaridades e sangra
Vê a cor do sangue
Fuma um cigarro, um
Charro. Afoga-te.
Pede outra e diz coisas
Bamboleia o teu corpo
Circula, sonhador perdido
Encontra a face que cai
Que te rói, sangra até
Perderes a voz, pede outra
Que não a que bebes
Só porque a tua sede
É a de sangue pisado
Mas nunca apenas isso.
CONSERVE ESTE BILHETE ATÉ AO FIM DA VIAGEM
os versos feridos pela prosa
da vida, os versos turvos
que tornam mais transparentes
os negros palcos do tempo, a dor
de sermos filhos das estações
e de andarmos por aí, hora após
hora, entre tudo o que declina
e piora. Em suma, os versos
que gritam: Temos as noites
contadas. E também
os que replicam:
Valha-nos isso.
Rui Pires Cabral
segunda-feira, julho 7
sexta-feira, julho 4
Não é poesia das pessoas
Nem tão pouco minha
É para os gestos infames
Da alma, um grito
Que brota dos dedos
Das turvas águas que lavam
A pureza enganadora
Dos símbolos
Só porque
A felicidade, é um cão
Que nos morde,
A mordidela dos costumes
A esconder as obscuras marcas
Dentadas do tempo.
Puxa-nos a carne,
Tal como fraldas
Duma camisa desbotada.
quarta-feira, julho 2
POR ACABAR
Essa coisa fundamental a trespassar-me o corpo
Aventura sob o sol espesso das gaivotas a fugir do mar.
Amostra ínfima da sociedade
Dos escorregas movidos a lágrimas,
Gargalhadas Fulminantes,
Varridela para o ridículo automatizado
Pela aromática nota espongiforme.
A movida matéria quente que abrilhanta
A experiência imunda das chávenas deslavadas
Pelo sangue frio dos clientes adormecidos
Entre passos fastidiosos no coro de prédios
Forrados a Papel vegetal.
No chão,
Lá fora,
O passado instantâneo abafa o carimbo ténue da lembrança.
A poesia do espaço caótico obriga-me a isto.
Sou servo miserável dum caminho que já faz pouco sentido,
Pseudo poeta da mestria extinta que se reformula
Numa máquina de café suja pelo passar descuidado do tempo.
No soalho inundado
Páginas misturadas de jornais e panfletos da luta pelos direitos
Moldáveis dos sonhos para a matéria.
E só depois,
As pessoas.
Um dono.
Emigrante de cuecas fio dental.
Uma empregada
Prosaica e bela,
Senhora verosímil como o camião
Que sob a circunferência ardente, resmunga com uma voz grosseira,
Metálica, mero instrumento da orquestra metropolitana.
E um tapa buracos
Viajante imóvel do vão de escadas para a clínica
Da Rasa. Desistiu de subi-las, preferiu abrigar-se.
Diz-me que,
Ainda me diz silencioso
Mas os erros não o são nem se prevêem, vão sendo.
Tiro-lhe mais um fino e ele sorri, a cor amarga dos seus
Dentes a esbater toda a minha hipocrisia de profundezas
No micro cosmos deste salão em que ainda trabalho
Pois escrevo
O albergue dos gestos mais puros da campânula dos dias -o parolo
Da gravata altiva e tom de voz cristalino,
Arrogância platinada por um percurso à moda de fausto ou não.
O velho do jornal de notícias
E a sua cadeira que traz sempre de casa,
A cadeira e a gargalhada moral ressequida.
A mãe fumegante e opulenta e os seus dois filhos preciosos
Como aquela televisão de 82cm que figura no panfleto
Não o pode ver hoje
Está em uso debaixo da banca da louça
Impedindo o dilúvio.
Na parede
Em cima da cota de cabelo descolorado que todos os dias pede para ligar
Para um número que já não existe ou não existiu, o néon esverdeado como catarro
SALÃO DE
CHÁ DA RASA
O local onde se servem chávenas de café queimadas.
Deveria ser esta a adenda, talvez entre parêntesis
Como um delimitado corpo, rio turbulento duma torneira entupida.