sábado, janeiro 26

HOMEM LOUCO NO JARDIM

Lambia com os olhos as pessoas que passavam. Nas suas mãos um jornal dizia que o mundo estava caótico. Não o olhava. Apenas era seguro pelos seus dedos tremendos. Fazia sol nesse dia, pequenas nuvens tingiam o céu de lixívia. Entretanto passou um homem, magro como uma cabeça de gado sugada até ao tutano por um bicho misterioso. De passo rápido ia tirando a faneca do cu como gente grande. Mais abaixo, acompanhada pelo seu cão grisalho, uma senhora descolorada ia dizendo para si que as folhas eram a fonte de toda a miséria do mundo. Tudo se conjugava, sobre o seu jornal, como numa tela carregada de símbolos propulsores duma realidade. Acendeu então o cigarro e olhou mais amplamente em seu redor. Ao fundo um touro. Tinha um ar enraivecido, o toureiro nem vê-lo, aquela imagem para ele era ainda mais estranha, mas nada de impossível. O animal caminhava determinado mas compassado, algo trazia em si, origem de toda a raiva, tinha um olhar desconfiado capaz de fulminar o mais desatento dos homens. No seu banco tudo isto lhe dava uma sensação de imobilidade vindoura e até interessante. O homem da faneca, o jornal nas suas mãos, a velha descolorada, o touro enraivecido pela vivência. Ouviu-se uma voz. Era o homem dos gelados. Perguntou-lhe qual queria. Nenhum foi-lhe respondido. Um seguro foi então sugerido. Um porque não foi respondido. Já há bastante tempo que sabia que precisava de tal segurança. Perguntou quando era e se, como se sabe, numa altura de aflição o seguro ia deixá-lo na prancha para os tubarões. Claro que sim empurraram. Sendo assim, quero dois. De vida e de, ressoou a interrogação. Nada disso, quero um de baunilha e outro de morango. O homem dos gelados ficou atónito, na sua cabeça a tômbola girava desordenadamente. Mesmo assim, tirou os dois gelados. Quando se esticou um braço com uma mão na ponta e duas moedas na palma, a rejeição monetária surpreendeu. Não era de maneira nenhuma normal a recusa. Sorriram os dois. Um para cada lado. O jornal começava a pesar, as folhas eram espessas como um manto de flanela. O homem dos gelados e dos seguros prosseguia com o seu carrinho e tentava impingir ao touro, ao fundo, qualquer coisa de inaudível. Sentado, e com os gelados a derreter no prolongamento do banco gargalhou. O touro tinha espetado uma cornada tal no carrinho e no homem que os dois voavam bem juntinhos e emaranhados pelo ar. Foi impressionante para si, o barulho seco que se fez ouvir aquando do contacto simultâneo com o chão. Já satisfeito com o nível visionário proporcionado decidiu abrir o jornal. Letras e mais letras e imagens acompanhantes figuravam por lá acertadamente. De repente um cabeçalho bombástico, ou melhor, mais bombástico e miserável do que todos os outros lidos de relanço. HOMEM LOUCO NO JARDIM. A leitura começou a correr ao ritmo das diminuídas letras. “Todos os dias é visto um homem, porque nunca de lá sai, sentado num banco do jardim Y, não se percebe o que lá faz, nem nunca, tão pouco, lhe foi perguntado o que faz por lá há tanto tempo. É um homem dum aspecto frio intrigante, parece sempre rir de todos aqueles que por lá passam. Não se sabe minimamente o que lhe ocorre na cabeça, daí ser o seu sorriso a razão desta reportagem flexiva.” Ao lado vinha uma foto do homem, e o homem do jornal não ficou nada surpreendido ao ver que o homem era afinal ele. O homem de riso frio e estranho, ao ler sobre si, entrou numa viagem pela sua galáxia introspectiva. Pensava para si. É bom saber que a minha loucura vem no jornal, pode ser que assim se perceba, que o mundo não é mais que multiplicadas insanidades dignas de serem observadas por todos, e consequentemente, insanidades que a todos pertencem, mesmo quando no jornal não figuram como eu. E assim voltou a gargalhar, gargalhou a tal volume, que rapidamente toda a gente parou para perceber donde vinha tal gargalhada demente.

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