quinta-feira, setembro 13

VERGÍLIO A DESCASCAR A MELANCIA

(...) Estou parado à varanda, dos quatro pontos cardeais. Uma sarrabulhada de vozes, aturdem-me. Por entre a balbúrdia, uma outra voz mais alta. As que falam dos deuses todos em torrente de ecos pelo espaço, por entre um fervor de ladainhas. E das divindades subalternas, mais chegadas à humanidade, para socorro das desgraças proletárias, desde o antraz e o coice de mula à espinhela caída - com a casquinada crítica dos descrentes evoluídos, ressoa pelo espaço, entremeada à devoção como um grasnar de corvos. A dos políticos salvadores da humanidade num histerismo com receitas prontas a aviar e a defesa aos guinchos da liberdade e da autoridade, que são iguais mas muitíssimo diferentes, porque a defesa da liberdade obriga a defendê-la dos que são contra a liberdade e exige pois uma autoridade de ferro para defendê-la, da propriedade e do ideal comunitário e comunitarismo em escalões, da gestão, autogestão, e semiautogestão, do direito à informação e que tem de ser por isso desinformação por virtude do direito à informação e que tem que ser por isso informação correcta e deixa assim de ser direito à informação que todavia ainda é esse direito mas melhorado embora não seja já direito à informação por que não ter esse direito, do direito à cultura que é só a boa cultura porque a má cultura é contra a boa e já não é cultura e precisa de ser afastada para salvaguarda do povo que gosta de má cultura pelo vício intrínseco de ser povo que precisa portanto de ser defendido contra si para não ser ele mas por aqueles que defendem a boa e podem defendê-la por virtude de ser mandatados pelo povo que não gosta de boa mas da outra, do direito ao trabalho que não é o dever de trabalhar, excepto quando os que defendem esse direito, mandatados pelos que não têm esse direito, conquistam o direito de imporem esse direito que é então um dever e os que não tinham esse direito já não querem, porque o direito e o dever estão cheios de antagonismos, e a defesa da democracia popular da democracia parlamentar e da democracia orgânica, da república da monarquia da oligarquia.

- Estai calados, estupores!

e da centralização, da descentralização e da anarquia, do presidencialismo do semipresidencialismo da regionalização e das autarquias locais, do primado do grupo, do primado do indivíduo, do primado da identidade nacional, e a interpretação das leis filtradas trabalhosamente pelos ódios ambições ralhos partidários dos que foram comissianados pela vontade colectiva esquadriada pelos grupos que os sonhos e ambições e ódios esquadriam e foram apurados depois de dias e semanas e meses e saíram depois ainda com uma rede intervalada orifícios por onde se escaparam ainda em ginástica de rins as ambições teorias princípios salvadores do bem comum que ficaram de fora dos princípios do bem comum em que se entreteceu a rede de leis, enquanto de outros cantos do mundo outras leis contrárias também para o bem comum erguiam-se em grita e doutros cantos outras também para benifício de ser-se em colectividade, cruzadas vozes por cima trémulas de ardor e histeria, embatiam umas nas outras esguichavam como ondas que se entrecruzam pulverizavam-se num ruído anónimo de arraial popular.

- Estai calados, desgraçados!

e foi quando os filósofos. Eram tecnicistas especializados precisos, confusos enrodilhados subtilíssimos, falavam de deus que não havia mas havia embora não houvesse, e da liberdade inteira do homem determinada pelas circunstâncias históricas e pelas glândulas e pela vontade dos outros homens que eram livres e determinados por outras, e falavam do espírito e da matéria que era o espírito de uma maneira que não o era, e da consciência do homem que era inconsciente, e da quantificação do inquantificável que se quantifica por essa quantificação mas não podia, e da explicação do inexplicável que ficava explicável pela palavra que era o nome no inexplicável para ser explicação, e de outras palavras que formavam crosta por cima para tapar tudo o que era intapável e ficava por baixo mas não se via e era como se não ficasse,

- Ide todos À merda!

e foi quando os moralistas. Falavam do comportamento humano na família na política nas relações entre os homens, dos pecados circunstânciais para todas as situações e das virtudes, dos benefícios da fornicação livre e à tripa forra e do horror dessa fornicação na perversão dos usos e costumes das sagradas normas para a regulamentação da espécie e da dignidade fora da ligeireza e inconsequência dos cães, da regra contra o destempero na fúria unitiva dos sexos desde a lei incompreensível e pré-histórica do incesto ao namoro delicado e retractivo da janela, e da estupidez dos interditos fabricados por convenção humana para codilho dos homens, da dignidade da família com a autoridade graduada por escalões e da hierarquia reaccionária espatifada ou da graduação dos escalões mas ao contrário, da sagrada união familiar e do direito temporão à fugitividade como a família piscícola, da criação dos filhos no choco materno e da criação colectiva nas chocadeiras eléctricas do Estado, da fidelidade matrimonial e da concepção de fidelidade como uma opressão reaccionária finalmente ultrapasssada com o direito intervalar de mudar de cama ou o direito de a ir mudando em certos prazos consoante as necessidades comprovadas pelas estatísticas, da anulação simples do acasalamento com o direito à fornicação avulsa e aleatória, da manutenção da rede das ligações familiares - do direito a baralhá-la como os canídeos, do direito à fabricação de filhos com defeitos de fabrico e da necessidade de apuramento da raça com cobridores profissionais, do direito à vida e à morte, ao respeito e ao insulto, à suavidade compreensiva e à chicotada, à paz e à guerra, ao coração e ao fígado.

- Para a puta que vos pariu!

e foi quando outra vez os pregadores da religião. Mas eu já mal os ouço. Nos intervalos da minha atenção avulsa, Deus e o destino do homem - que destino é o teu? aqui, só, filtrado através de todas as ilusões, e a necessidade de justificar uma vida quem se não Deus? e a citação dos tratadistas desde o motor imóvel e metafísico do grego, e outra vez a casquinada alegre dos antimetafísicos, e o murmúrio longínquo da beatas velhas a reazar o padre-nosso, e os métodos novos e tecnocráticos, ou de pressão psicológica para se chegar à divindade, enquanto em frente, estou parado à varanda, pesada massa imensa a montanha desnudada à aridez, e os que pregam um Deus intratrável cheio de fígados coléricos, e os que pregam um Deus porreiro cheio de comunicação proletária que vai connosco aos comícios aos cafés e às putas, e os que dizem outra vez que a matéria é que, os que espremem todas as religiões para terem um Deus sintético e os que aproveitam essas escorralhas para fabricarem deuses avulsos corriqueiros e entremeados a todo o ser de circunstância, os que fabricam religiões novas com abaixo-assinados, e os pregadores dos malefícios da religião através dos tempos e do seu ódio vesgo ao progresso, e os pregadores dos benefícios da religião e do seu amor ao progresso com o exemplo dos grandes sábios que vergavam a cerviz e diziam «eu creio», enquanto os outros com outros sábios quem não diziam nem vergavam, estou imóvel à varanda, na tarde paralizada de calor - e foi quando os artistas.

- Espera. Faltavam agora ainda estes, os artistas. Que é que vós quereis, meus bardamerdas?

Queriam coisas, queriam também dizer coisas. E imediatamente um murmúrio larvar, ia crescendo, com esguichos histéricos aqui e além, depois foi a gritaria. Mas eu não quero ouvir. Fecho mesmo a varanda, não quero. Mas eles desvairam aos gritos, deve haver grossa pancadaria para as bandas da cultura. Devem ter vindo os mortos a ajudar. Dizem nomes bárbaros, é a barbaridade da nossa condição. Suprematismo, pois, pois. E orfismo purismo simultaneísmo oh, oh. E rayonismo neoplasticismo. E uma voz escura já cavernosa, cubismo,fauvismo eh, eh. E umas vozes raquíticas em falsete, a pregação do vazio programático o nulismo. E o sitismo que era a pregação contra a existência do quadro e a defesa apenas e intransigente do sítio dele na parede - e os poetas. A defesa do regresso às formas poéticas de base que um jocoso crismou de parolice e que ficou o parolismo. E o baralhismo que baralhava muitas palavras e as atirava ao ar e caíam em forma de poema - e o saquismo. Que era metê-las num saco para as tirar ao acaso da inspiração, e o mudismo. Que era a poesia muda em livros em branco. E o canalhismo que era uma poesia ordinária para as classes mais desfavorecidas. E o caralhismo, cujo o chefe de fila era o célebre autor de «Caralhícolas», e que era uma poesia ainda mais ordinária.

- Ide berrar para as profundas do inferno!

e o panacismo que considerava o pânico como medida fundamental do sentimento - e foi quando os músicos

- Não quero! Não quero!

tapei os ouvidos - meu Deus. Estou assim algum tempo, destapo os ouvidos, havia ainda atrasados os romancistas. E os arquitectos, urbanistas. Os pedagogos, os cientistas. E os críticos.
Na tarde abrasada desértica.
E os técnicos publicitários. E os técnicos dos cemitérios.
Na tarde imóvel à praga do calor. Uma voz canta ao longe - canta? Não a ouço. Na tarde de minha condenação.
E os economistas." (...)


Vergílio Ferreira, em Para Sempre

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