quarta-feira, agosto 22

SER NA NOITE

Caminhava pela rua perdido em devaneios, seus olhos pesados e acastanhados deixavam brilhar o que rodeava. Os seus passos, serenos, eram como levianas pingas de chuva. Trazia pouca roupa, uma camisa desbotada, umas calças rotas e uns sapatos que estavam em contacto directo com a pele dos seus pés. Não tinha ninguém, apenas um sorriso cheio de tudo aquilo que via em volta, as pessoas, os movimentos da cidade, os pássaros, as arvores e tudo o demais. Não queria nada mais para além da possibilidade de respirar sem se aperceber. Já não tinha fome de nada, estava vazio como quem está cheio de tudo, bem dentro de si. A sua alma era como uma rede, durante anos de vida foi apanhando tudo o que lhe interessava em mar imenso, o que escapava era somente porque era peixe demasiado miúdo para bloquear no seu quadriculado espiritual. Pescou até se encher de tudo que lhe interessava. Até que um dia, cortou a rede, quis começar tudo de novo numa via diferente, já tinha bagagem despejada para tomar tal e capital atitude. Ali estava ele, pela cidade que fala para quem quer ouvir, no seu canto, o canto do teatro que era o degrau do seu quarto com vista para as estrelas. Nada o prendia, nem o mau cheiro, nem a segurança, nem mesmo a vontade. Era um verdadeiro senhor o que via quando parava em frente a um vidro. Era ele. O rosto era o mesmo, os olhos, o nariz, as bochechas, a boca… Era capaz de correr pelos cantos e recantos como o menino que tinha sido há já demasiado tempo. Nada o impedia. A miséria desculpava-o de tudo o que havia para demonstrar cinicamente. Debaixo do seu cartão, de visita, para quem passava e olhava curiosamente, apenas uns livros, uma manta purificada por noites de solidão contemplativa. Nem a luz dos candeeiros o incomodava na hora do sono, eram fonte luminosa para todo o tipo de leituras possíveis em noites de infinidades acontecidas. Os seus livros não tinham frases, nem linhas nem tampouco tinta. Eram livros abertos na escuridão de estar sozinho. Às vezes, como pérolas nunca vistas, conversas até amanhecer, páginas folheadas pela sonoridade das palavras. Sorrisos, gargalhadas, toques, olhares nas mais variadas das percepções interpretativas. Eram esses pequenos tesouros que o deixavam feliz como vagabundo que era. Sem casa, sem carro, sem televisão, sem quartos, prateleiras, sem nada -com tudo. Por vezes chorava, não se negava a necessidades fulcrais como esse acto altruísta de se deixar ser. Não sabia porque chorava. Chorava apenas por necessidade. O choro era para ele o acto contínuo de ser homem como todos os outros que passavam pelos seus dias.

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