quarta-feira, junho 14

Figo o rato clonado

Rato Figo na cerimónia de prémios dos laureus




Hoje enquanto tentava ler interessadamente as notícias do dia deparei-me com esta desconfortante e divertida reportagem:

O ratinho "Figo" -nome com que o clone foi baptizado, por influências do campeonato europeu de futebol, que decorria quando foi clonado - nasceu saudável, embora obeso (como todos os animais clonados), o que animou os cientistas, principalmente porque a Dolly, à semelhança de outros animais entretanto clonados, nasceu com anomalias genénitas.
Fotografado como uma estrela - não do relvado, mas do laboratório - "Figo" durou nove meses. Foi a "menina dos olhos" de Ricardo Ribas que, apesar de ser um homem da ciência, se afeiçoou ao roedor. "Acabamos por criar laços de afectividade, pois não deixa de ser um animal criado por nós", contou Ricardo Ribas. A morte do rato "Figo" não apagou o sucesso da experiência, que mereceu já a atenção de cientistas de vários países, interessados na sua aplicação em roedores e outros animais de maior porte. No caso dos roedores, explicou Ricardo Ribas, o interesse deve-se ao facto da gestação destes animais ser muito curta (21 dias), o que permite acompanhar rapidamente os resultados.

O grande objectivo desta técnica é aperfeiçoar a clonagem com vista à sua utilização em animais maiores, nomeadamente gado, para a produção de leite com antibióticos, por exemplo.


Parei de ler enquanto me tentava conter, as gargalhadas despregadas impediam-me de prosseguir este cómico raciocínio: um português (é nestas alturas que sou um nacionalista, quando ouço destas anedotas) clonou um roedor, deu-lhe o futebolístico nome de Figo, provavelmente o seu primeiro nome seria Luís… deu-lhe amor e carinho durante nove longos meses e se calhar ainda lhe deu um funeral digno de transmissão televisiva, com vários elementos de peso deste nosso grande país que é Portugal; não pensem que estou a falar do funeral do verdadeiro Figo, esse também vai ter direito a transmissão televisiva no seu, mas para já ainda não, ainda não morreu…

O CÁGADO



Havia um homem que era muito senhor da sua vontade. Andava às vezes sozinho pelas estradas a passear. Por uma dessas vezes viu no meio da estrada um animal que parecia não vir a propósito — um cágado.O homem era muito senhor da sua vontade, nunca tinha visto um cágado; contudo, agora estava a acreditar. Acercou-se mais e viu com os olhos da cara que aquilo era, na verdade, o tal cágado da zoologia.O homem que era muito senhor da sua vontade ficou radiante, já tinha novidades para contar ao almoço, e deitou a correr para casa. A meio caminho pensou que a família era capaz de não aceitar a novidade por não trazer o cágado com ele, e parou de repente. Como era muito senhor da sua vontade, não poderia suportar que a família imaginasse que aquilo do cágado era história dele, e voltou atrás. 0uando chegou perto do tal sítio, o cágado, que já tinha desconfiado da primeira vez, enfiou buraco abaixo como quem não quer a coisa.O homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a espreitar para dentro e depois de muito espreitar não conseguiu ver senão o que se pode ver para dentro dos buracos, isto é, muito escuro. Do cágado, nada. Meteu a mão com cautela e nada; a seguir até ao cotovelo e nada; por fim o braço todo e nada. Tinham sido experimentadas todas as cautelas e os recursos naturais de que um homem dispõe até ao comprimento do braço e nada.Então foi buscar auxílio a uma vara compridíssima, que nem é habitual em varas haver assim tão compridas, enfiou-a pelo buraco abaixo, mas o cágado morava ainda muito mais lá para o fundo. Quando largou a vara, ela foi por ali abaixo, exatamente como uma vara perdida.Depois de estudar novas maneiras, a ofensiva ficou de facto submetida a nova orientação. Havia um grande tanque de lavadeiras a dois passos e ao lado do tanque estava um bom balde dos maiores que há. Mergulhou o balde no tanque e, cheio até mais não, despejou-o inteiro para dentro do buraco do cágado. Um balde só já ele sabia que não bastava, nem dez, mas quando chegou a noventa e oito baldes e que já faltavam só dois para cem e que a água não havia meio de vir ao de cima, o homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a pensar em todas as espécies de buracos que possa haver.— E se eu dissesse à minha família que tinha visto o cágado? - pensava para si o homem que era muito senhor da sua vontade. Mas não! Toda a gente pode pensar assim menos eu, que sou muito senhor da minha vontade.O maldito sol também não ajudava nada. Talvez que fosse melhor não dizer nada do cágado ao almoço. A pensar se sim ou não, os passos dirigiam-se involuntariamente para as horas de almoçar.— Já não se trata de eu ser um incompreendido com a história do cágado, não; agora trata-se apenas da minha força de vontade. É a minha força de vontade que está em prova, esta é a ocasião propícia, não percamos tempo! Nada de fraquezas!Ao lado do buraco havia uma pá de ferro, destas dos trabalhadores rurais. Pegou na pá e pôs-se a desfazer o buraco. A primeira pazada de terra, a segunda, a terceira, e era uma maravilha contemplar aquela majestosa visibilidade que punha os nossos olhos em presença do mais eficaz testemunho da tenacidade, depois dos antigos. Na verdade, de cada vez que enfiava a pá na terra, com fé, com robustez, e sem outras intenções a mais, via-se perfeitamente que estava ali uma vontade inteira; e ainda que seja cientificamente impossível que a terra rachasse de cada vez que ele lhe metia a pá, contudo era indiscutivelmente esta a impressão que lhe dava. Ah, não! Não era um vulgar trabalhador rural. Via-se perfeitamente que era alguém muito senhor da sua vontade e que estava por ali por acaso, por imposição própria, contrafeito, por necessidade do espírito, por outras razões diferentes das dos trabalhadores rurais, no cumprimento de um dever, um dever importante, uma questão de vida ou de morte — a vontade.Já estava na nonagésima pazada de terra; sem afrouxar, com o mesmo ímpeto da inicial, foi completamente indiferente por um almoço a menos. Fosse ou não por um cágado, a humanidade iria ver solidificada a vontade de um homem.A mil metros de profundidade a pino, o homem que era muito senhor da sua vontade foi surpreendido por dolorosa dúvida — já não tinha nem a certeza se era a qüinquagésima milionésima octogésima quarta. Era impossível recomeçar, mais valia perder uma pazada.Até ali não havia indícios nem da passagem da vara, da água ou do cágado. Tudo fazia crer que se tratava de um buraco supérfluo; contudo, o homem era muito senhor da sua vontade, sabia que tinha de haver-se de frente com todas as más impressões. De fato, se aquela tarefa não houvesse de ser árdua e difícil, também a vontade não podia resultar superlativamente dura e preciosa.Todas as noções de tempo e de espaço, e as outras noções pelas quais um homem constata o quotidiano, foram todas uma por uma dispensadas de participar no esburacamento. Agora, que os músculos disciplinados num ritmo único estavam feitos ao que se quer pedir, eram desnecessários todos os raciocínios e outros arabescos cerebrais, não havia outra necessidade além da dos próprios músculos.Umas vezes a terra era mais capaz de se deixar furar por causa das grandes camadas de areia e de lama; todavia, estas facilidades ficavam bem subtraídas quando acontecia ser a altura de atravessar uma dessas rochas gigantescas que há no subsolo. Sem incitamento nem estímulo possível por aquelas paragens, é absolutamente indispensável recordar a decisão com que o homem muito senhor da sua vontade pegou ao princípio na pá do trabalhador rural para justificarmos a intensidade e a duração desta perseverança. Inclusive, a própria descoberta do centro da Terra, que tão bem podia servir de regozijo ao que se aventura pelas entranhas do nosso planeta, passou infelizmente desapercebida ao homem que era muito senhor da sua vontade. O buraco do cágado era efectivamente interminável. Por mais que se avançasse, o buraco continuava ainda e sempre. Só assim se explica ser tão rara a presença de cágados à superfície devido à extensão dos corredores desde a porta da rua até aos aposentos propriamente ditos.Entretanto, cá em cima na terra, a família do homem que era muito senhor da sua vontade, tendo começado por o ter dado por desaparecido, optara, por último, pelo luto carregado, não consentindo a entrada no quarto onde ele costumava dormir todas as noites.Até que uma vez, quando ele já não acreditava no fim das covas, já não havia, de fato, mais continuação daquele buraco, parava exatamente ali, sem apoteose, sem comemoração, sem vitória, exatamente como um simples buraco de estrada onde se vê o fundo ao sol. Enfim, naquele sítio nem a revolta servia para nada.Caindo em si, o homem que era muito senhor da sua vontade pediu-lhe decisões, novas decisões, outras; mas ali não havia nada a fazer, tinha esquecido tudo, estava despejado de todas as coisas, só lhe restava saber cavar com uma pá. Tinha, sobretudo, muito sono, lembrou-se da cama com lençóis, travesseiro e almofada fofa, tão longe! Maldita pá! 0 cágado! E deu com a pá com força no fundo da cova. Mas a pá safou-se-lhe das mãos e foi mais fundo do que ele supunha, deixando uma greta aberta por onde entrava uma coisa de que ele já se tinha esquecido há muito - a luz do sol. A primeira sensação foi de alegria, mas durou apenas três segundos, a segunda foi de assombro: teria na verdade furado a Terra de lado a lado?Para se certificar alargou a greta com as unhas e espreitou para fora. Era um país estrangeiro; homens, mulheres, árvores, montes e casas tinham outras proporções diferentes das que ele tinha na memória. 0 sol também não era o mesmo, não era amarelo, era de cobre cheio de azebre e fazia barulho nos reflexos. Mas a sensação mais estranha ainda estava para vir: foi que, quando quis sair da cova, julgava que ficava em pé em cima do chão como os habitantes daquele país estrangeiro, mas a verdade é que a única maneira de poder ver as coisas naturalmente era pondo-se de pernas para o ar...Como tinha muita sede, resolveu ir beber água ali ao pé e teve de ir de mãos no chão e o corpo a fazer o pino, porque de pé subia-lhe o sangue à cabeça. Então, começou a ver que não tinha nada a esperar daquele país onde nem sequer se falava com a boca, falava-se com o nariz.Vieram-lhe de uma vez todas as saudades da casa, da família e do quarto de dormir. Felizmente estava aberto o caminho até casa, fora ele próprio quem o abrira com uma pá de ferro. Resolveu-se. Começou a andar o buraco todo ao contrário. Andou, andou, andou; subiu, subiu, subiu...Quando chegou cá acima, ao lado do buraco estava uma coisa que não havia antigamente — o maior monte da Europa, feito por ele, aos poucos, às pazadas de terra, uma por uma, até ficar enorme, colossal, sem querer, o maior monte da Europa.Este monte não deixava ver nem a cidade onde estava a casa da família, nem a estrada que dava para a cidade, nem os arredores da cidade que faziam um belo panorama. O monte estava por cima disto tudo e de muito mais.O homem que era muito senhor da sua vontade estava cansadíssimo por ter feito duas vezes o diâmetro da Terra. Apetecia-lhe dormir na sua querida cama, mas para isso era necessário tirar aquele monte maior da Europa, de cima da cidade, onde estava a casa da sua família. Então, foi buscar outra pá dos trabalhadores rurais e começou logo a desfazer o monte maior da Europa. Foi restituindo à Terra, uma por uma, todas as pazadas com que a tinha esburacado de lado a lado. Começavam já a aparecer as cruzes das torres, os telhados das casas, os cumes dos montes naturais, a casa da sua família, muita gente suja de terra, por ter estado soterrada, outros que ficaram aleijados, e o resto como dantes.O homem que era muito senhor da sua vontade já podia entrar em casa para descansar, mas quis mais, quis restituir à Terra todas as pazadas, todas. Faltavam poucas, algumas dúzias apenas. Já agora valia a pena fazer tudo bem até ao fim. Quando já era a última pazada de terra que ele ia meter no buraco, portanto a primeira que ele tinha tirado ao princípio, reparou que o torrão estava a mexer por si, sem ninguém lhe tocar; curioso, quis ver porque era — era o cágado.

ALMADA NEGREIROS

Chuva ácida



Corre, corre,
antes que o tempo
se evapore
corre, corre…
porque o tempo
também morre!
Corre, corre…

Foges tempo
do Passado,
Como podes?
Foges da Verdade
E da realidade
porque corres?

Foges talvez
porque chove
corre, corre…

Chuva esta tão tua,
escorre, escorre
e que arrasta
sem piedade,
Corre, corre!

Filha bastarda
da verdade
corre, foge
da triste contemporaneidade
que chove, chove…
e que não sabe
o seu lugar

Mas que fim
tão interessante
foge, foge!
do fim escuro
E arrepiante,
Foge, corre…

É uma vida alucinante
foge, chove
porque já não sabe endireitar
corre, foge…

Fizeste da chuva
uma vontade
foge, foge!
Uma repetição da
Ingenuidade!
Corre, foge…
porque chove
sem parar…



O problema das massas




A Vontade não se afirma, tornou-se numa pluralidade enfraquecida, a força já não é só uma (a natureza) mas várias subdivisões que nos confundem e esvanecem. Nunca até então a vontade foi tão vendida e ramificada; a de mudança dos padrões sociais esgotou-se a partir do momento em que a despreocupada sociedade se propôs a dar-nos uma vida aparentemente melhor, no etéreo e longínquo dia em que a preguiça começou a rebolar como uma exponencial bola de flocos de neve. Aí começou a sua odisseia. O mundo tomou o rumo da destruição da força de vontade, perdeu a sua vida e tornou-se num esquartejado fantasma. Só no dia em que os homens largarem o peso de todas as ociosidades não necessárias (mesmo aquelas que aparentam levar-nos à mudança) é que nós conseguiremos agarrar a verdadeira vontade: a que nos rói e teima em não ganhar vida. O hábito molda-nos, só aí conseguiremos ter força para agir e para nos elevar a deuses patéticos, com toda a digna e verosímil ingenuidade, sem falsas necessidades nem ilusórias preocupações. E para que este utópico dia chegue é necessário dar outro sentido à palavra utopia, é preciso que nos deixemos de sonhos e nos queiramos naturalmente preencher. Merda já há muita, as coisas não estão bem, o mundo não rola bem, mas o eixo ainda não se quebrou! A Vontade está dividida mas ainda tem uma origem e só a origem nos levará à equilibrada vivência e só a equilibrada vivência nos fará verdadeiramente felizes e só a felicidade nos levará à morte sem receios. Perdi a vergonha, chamem-me louco, chamem-me tudo e mais alguma coisa, mas assim não somos verdadeiramente felizes, nem nunca o seremos. Enquanto não convergirmos os nossos ideais diferentes e abstractos para a mesma origem ou para uma maior proximidade da verdade, estamos a deixar que tudo o que como verdadeiras pessoas sentimos, nos tolha, nos preencha de uma aparente submissão agradável. Deixamos que o nosso caminho não tenha sentido e que a vontade se torne numa apatia caprichosa, numa baça sombra sobre um qualquer pedaço de betão. Não acredito em milagres, nem em fórmulas mágicas, mas ainda acredito na força de vontade e sinto que um dia todos nós vamos ganhar vida para conseguir impedir esta caminhada cada vez mais ofegante e sem sentido. Enquanto escrevo penso em todos aqueles que tal como eu escrevem no papel, no computador ou em pensamento, a sua insatisfação, os que escondem, os que mostram e os que escrevem por escrever…. Milhares que se vão arrastando até ao dia da sua morte, vazios e injustamente preenchidos pelo desagrado. Penso agora na última frase dactilografada e ocorre-me: os velhos são na sua maioria uma cambada de resmungões. Porque será? Pelo simples facto de que se arrastaram pelo tempo sem verdadeiramente viverem, sentem-se arrependidos por se deixarem levar anos a fio por vias escuras e alienantes. Há quem diga ou pense que essa amargura é inevitável, que se deve à proximidade com a morte… Sinceramente, não faz sentido, quando nos sentimos verdadeiramente realizados e preenchidos nem a morte nos pode assustar!