domingo, outubro 21

A ESFERA*

“E eles passeiam-se pelo mundo com a sua imortalidade histórica e inadequada...”

Era uma vez uma pequena esfera. Nessa esfera tudo agia em prol duma finalidade abstracta – mas não muito! Os donos dessa Esfera eram tiranos, seres capazes de tudo quando assim deixavam; mais abaixo da tirania institucionalizada havia outros mais seres, tiranos também, mas de um egoísmo menor.

Os tiranos superiores agiam mesmo com os bolsos a romper de tanto peso - isso não os preocupava, o cangalheiro coseria os bolsos que já não o eram ou até faria um novo fato de ordem fúnebre.

Os tiranos inferiores, desgraçados, gostavam de ter pena própria, e até, com um deturpado sentido de orgulho, ostentar símbolos ordenados pela tirania superior.

Como foi escrito, os superiores agiam, e como tal - e seria desnecessário escrever - os inferiores não reagiam.

Era uma esfera estranha, um pouco achatada que não nos pólos.

Nalguns dias de sol, palavras soltavam-se duma caixa disforme mas desde sempre pouco alienada, mas mesmo nesses dias, as palavras não eram actos e outros actos não deixavam de seguir o seu rumo.

Em dias de chuva, que eram cada vez em maior número, palavras antecediam actos e os actos formavam o seu rumo.

A chuva já há algum tempo, gradualmente, que ganhava outros contornos. Era uma chuva metálica e estridente que se arrastava pelos dias da esfera não a atingindo fisicamente em toda a sua superfície. Sendo uma chuva proveniente de actos congruentemente elaborados pelos tiranos superiores, os locais a humedecer pelas lágrimas eram escolhidos pelos dedos do interesse dourado – isto simbolicamente falando!

Os outros tiranos, os inferiores – somente pelo gosto de terem razões para falar sem agir – iam vendo pelos próprios os olhos a chuva cair como bombas nos seus quintais matando as suas couves e demais legumes – isto sarcasticamente falando!

Resumindo, naquela esfera - que não é de maneira alguma aquela que temos na palma da mão - a chuva caía aos olhos de todos, e cedo ou tarde podia mesmo cair para todos de corpo inteiro.

E assim, o medo – o catalizador de todos os problemas e de todas as soluções – ia ganhando espaço geográfico.

Um dia todos perceberam que a tirania já não era nem superior nem inferior. A tirania era então a próprio esfera.

Os superiores, sem se perceber se felizes ou entristecidos, por lá prosseguiam a sua caminhada árdua pelo forro dos seus bolsos.

Os inferiores, coitados, por lá corriam como baratas tontas numa sala blindada sem nada de necessário à sua condição natural.

Era triste saber que a esfera tinha absorvido anos de coragem e medo para assim formar uma tirania irreversível. Era a esfera agora, formada tirania dos tiranos, inferiores e superiores, corajosos e medrosos.

Certo dia, nem se interiorizou quando, uma tirania faleceu. Vergonhosamente, nem cangalheiros havia para lhe dar um fato decente para o funeral da memória; mas nesse acertado dia, obra da esfera tirana duma tirania que não a dos seres opostos, a esfera permaneceu – a sua luta tinha sido renhida, adequada às necessidades naturais da existência.


* este título é o nome da futura seita religiosa apocalítica, em que sou sacerdote supremo, que terá lugar no meu sotão todos os sábados à tarde das 15h às 17h. Quem estiver interessado veja o filme de título homónimo como pré-requisito de admissão. Só serão admitidos maiores de 18 anos com carta de condução e de preferência que possuam carros de alta cilindrada ou chassos antecedentes ao ano de mil novecentos e setenta. Para os mais cépticos mas possuídores dum apetite voraz e lambareiro, todos os serões serão acompanhados por bolachas com cobertura de chocolate.

TEMA DO SERÃO DO PRÓXIMO SÁBADO:

"O mundo está nas vossas mãos e não nas do Senhor."

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