domingo, janeiro 21

A CONSTATAÇÃO DE QUE A IDEIA GENERALIZADA QUE SE TEM DE ANARQUIA SERVE APENAS PARA DEFINIR OS TEMPOS EM QUE VIVEMOS


Andava eu por aqui a pesquisar acerca duma das grandes falácias dos conceitos modernos e eis que me deparo com uma pérola escrita de um senhor que desconhecia até ao momento que antecede a escrita desta posta.

ANARQUIA.

Embora já tivesse vagamente a ideia correcta, consegui através desta pesquisa frutuosa ter uma visão mais realista e fundamentada acerca deste vasto sistema revolucionário-ideológico. Nesta pequena-grande janela para o conhecimento a que chamamos de laptop, ou mais correctamente ecrã de computador, descobri entre os muitos personagens que compõe o passado histórico do anarquismo - que infelizmente hoje em dia não ganha forma nesta sociedade consumista que vai ardendo através da chama do hábito queimado pelos anos de destruição e abolição da liberdade fundamental ao desenvolvimento pessoal e vivencial do ser humano - um senhor, ou melhor um grande senhor, um gigante e inconformado senhor de nome Errico Malatesta. Este vulto quase apagado da história mediática, foi um insurrecto por natureza que lutou para “assegurar a todos a justiça, a liberdade e o bem-estar”. Não me querendo alongar muito, na ânsia de expor aqui a pérola de que vos falo, deixo então aqui neste meu espaço, que vendo bem é de todos, um pequeno texto que escreveu e que me tocou bastante no que toca à minha interpretação de alguns aspectos que compõe a sociedade contemporânea.


“CAPITALISTAS E LADRÕES”

“A propósito das tragédias de Houndsditch e Sidney Street numa ruela da City, ocorre uma tentativa de assalto a uma joalharia; os ladrões, surpreendidos pela polícia, fogem abrindo caminho aos tiros. Mais tarde, dois dos ladrões, descobertos numa casa de East-End defendem-se uma vez mais com tiros, e morrem no tiroteio. No fundo, nada de extraordinário em tudo isto, na sociedade actual, excepto a energia excepcional com que os ladrões se defenderam.
Mas esses ladrões eram russos, talvez refugiados russos; e é também possível que tenham frequentado um clube anarquista nos dias de reunião pública, quando ele está aberto a todos. Sem dúvida, a imprensa capitalista serve-se, uma vez mais, deste caso para atacar os anarquistas. Ao ler os jornais burgueses, dir-se-ia que a anarquia, este sonho de justiça e de amor entre os homens, nada mais é senão roubo e assassinato. Com tais mentiras e calúnias, conseguem, com certeza, afastar de nós, muitos daqueles que estariam connosco se ao menos soubessem o que queremos. Não é inútil repetir, portanto, qual é nossa atitude de anarquistas em relação à teoria e à prática do roubo. Um dos pontos fundamentais do anarquismo é a abolição do monopólio da terra, das matérias-primas e dos instrumentos de trabalho, e, consequentemente, a abolição da exploração do trabalho alheio exercida pelos detentores dos meios de produção. Toda apropriação do trabalho alheio, tudo o que serve a um homem para viver sem dar à sociedade a sua contribuição à produção, é um roubo, do ponto de vista anarquista e socialista. Os proprietários, os capitalistas, roubaram do povo, pela fraude ou pela violência, a terra e todos os meios de produção, e como consequência deste roubo inicial podem subtrair dos trabalhadores, a cada dia, o produto de seu trabalho. Mas esses ladrões afortunados tornaram-se fortes, fizeram leis para legitimar sua situação, e organizaram todo um sistema de repressão para se defender, tanto das reivindicações dos trabalhadores como daqueles que querem substituí-los, agindo como eles próprios agiram. E agora o roubo desses senhores chama-se propriedade, comércio, indústria, etc; o nome de ladrões é reservado, todavia, na linguagem usual, àqueles que gostariam de seguir o exemplo dos capitalistas, mas que, tendo chegado muito tarde e em circunstâncias desfavoráveis, só podem fazê-lo revoltando-se contra a lei. Entretanto, a diferença de nomes empregados ordinariamente não basta para apagar a identidade moral e social das duas situações. O capitalista é um ladrão cujo sucesso se deve a seu mérito ou a de seus ascendentes; o ladrão é um aspirante a capitalista que só espera a oportunidade para sê-lo na realidade, para viver, sem trabalhar, do produto de seu roubo, isto é, do trabalho alheio. Inimigos dos capitalistas, não podemos ter simpatia pelo ladrão que visa tornar-se capitalista. Partidários da expropriação feita pelo povo em proveito de todos, não podemos, enquanto anarquistas, ter nada em comum com uma operação que consiste unicamente em fazer passar a riqueza das mãos de um proprietário para as de outro. Obviamente, refiro-me ao ladrão profissional, àquele que não quer trabalhar e procura os meios para poder viver como parasita do trabalho alheio. É bem diferente o caso de um homem ao qual a sociedade recusa meios de trabalhar e que rouba para não morrer de fome e não deixa morrer de fome seus filhos. Neste caso, o roubo (se é que se pode denominá-lo assim) é uma revolta contra a injustiça social, e pode tornar-se o mais imperioso dos deveres. Mas a imprensa capitalista evita falar desses casos, pois deveria, ao mesmo tempo, atacar a ordem social que tem por missão defender. Com certeza, o ladrão profissional é, ele também, uma vítima do meio social. O exemplo que vem de cima, a educação recebida, as condições repugnantes nas quais se é, amiúde, obrigado a trabalhar, explicam facilmente como é que homens, que não são moralmente superiores a seus contemporâneos, colocados na alternativa de serem explorados ou exploradores, preferem ser exploradores e encarregam-se de consegui-lo pelos meios de que são capazes. Todavia, essas circunstâncias atenuantes podem também se aplicar aos capitalistas, e esta é a melhor prova da identidade das duas profissões. As ideias anarquistas não podem, em consequência, levar os indivíduos a tornarem-se capitalistas assim como não pode levá-los a serem ladrões. Ao contrário, dando aos descontentes uma ideia de vida superior e esperança de emancipação colectiva, elas desviam-nos, na medida do possível, tendo em vista o meio actual, de todas essas acções legais ou ilegais, que representam apenas adaptação ao sistema capitalista, e tendem a perpetuá-lo. Apesar de tudo isso, o meio social é tão poderoso e os temperamentos pessoais tão diferentes, que bem pode existir entre os anarquistas alguns que se tornem ladrões, como há os que se tornam comerciantes ou industriais; mas, neste caso, uns e outros agem, assim, não por causa, mas a despeito das ideias anarquistas.”

Errico Malatesta (Março de 1911)

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